Há quase dez anos eu a visitei pela única vez. Apaixonei-me de imediato pela beleza natural da Madeira e pela simpatia do povo madeirense. Percorremos toda a ilha durante uma semana. Da cidade do Funchal partimos à descoberta, junto á orla marítima, pelas suas estradas sinuosas e contrastes sociais, de Câmara de Lobos à Ponta do Sol. Da Calheta até Porto Moniz onde paramos para desfrutar das piscinas naturais. Seguimos pela costa norte, pelos túneis húmidos até São Vicente onde visitamos as grutas. Até Santana o passeio torna-se cada vez mais fantástico, paredes meias entre o mar e a escarpa da montanha. As pessoas com quem nos cruzamos pelo caminho são da maior simpatia, o cheiro a maresia misturado com o das flores é inesquecível, por todo o lado é o verde e a água. Do Machico seguimos uma estrada que atravessa uma paisagem semi-deserta e, sem o saber ficamos a conhecer a Prainha, a única praia de areia fina em toda a ilha. Divertimo-nos a deslizar as ruas do Monte nas famosas cestas, subimos às serras como o Pico Ruivo e o Pico do Areeiro, cruzamos e acabamos bem no meio de um arraial madeirense que afinal não passava de uma festa política alaranjada. Disseram-nos que lá no alto da Eira do Serrado o miradouro tem uma vista deslumbrante. Sem palavras e de olhos bem abertos eu confirmei isso mesmo, e nem dei pelas minhas vertigens ao olhar lá para baixo, para a cratera do vulcão. Descemos depois a única estrada que levava até ao Curral das Freiras, um intenso e longo ziguezague, escarpa a baixo. Aí os nossos estômagos já reclamavam atenção quando na procura de um sítio para comer nos destivemos por momentos num largo e procuramos indicações. Uma menina de uns nove ou dez anos que estava sentada num murinho saltou e veio ao nosso encontro. Atrás dela vieram também dois outros meninos mais pequenos. Os três estavam descalços e vestiam roupas já desbotadas pelo tempo e um pouco sujas. A menina aproximou-se do carro e abeirou-se da janela com um sorriso encantador e um brilho nos olhos. Levantou as mãos, juntas em concha como a guardar alguma coisa, e perguntou-me de imediato: O senhor quer comprar este passarinho? É muito bonito, o meu irmão apanhou-o ali há bocado. Não minha menina, nós não queremos ficar com o passarinho… Então podem me dar uma moedinha? Sabe, é que tenho mais oito irmãos…
Todas as tragédias são iguais, na dor, no desespero, na imprevisibilidade, na perda imensa e irreparável. Sabemos todos disso. Às vezes, por opção, procuramo-nos desligar, na medida do possível, das notícias, das tragédias, das imagens de sofrimento, mas o dilúvio que assolou toda a ilha da Madeira não me pode deixar indiferente e chocado. E na minha mente não pára de surgir a recordação daquela carinha suja e sorridente, da menina que um dia me quis vender um passarinho. Questiono-me agora o que poderá ter acontecido a ela e aos seus irmãos?
Todas as tragédias são iguais, na dor, no desespero, na imprevisibilidade, na perda imensa e irreparável. Sabemos todos disso. Às vezes, por opção, procuramo-nos desligar, na medida do possível, das notícias, das tragédias, das imagens de sofrimento, mas o dilúvio que assolou toda a ilha da Madeira não me pode deixar indiferente e chocado. E na minha mente não pára de surgir a recordação daquela carinha suja e sorridente, da menina que um dia me quis vender um passarinho. Questiono-me agora o que poderá ter acontecido a ela e aos seus irmãos?