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Hoje é dia do ignorado dia mundial sem carros. Nada mais utópico imaginar-se uma estrada, uma rua desta cidade vazia de automóveis a meio da semana. Um dos principais problemas das cidades é a mobilidade, o tempo perdido no trânsito e o quanto a escassez de transportes urbanos afecta a vida das pessoas. De há muito a esta parte que optei pelos transportes públicos para chegar ao meu local de trabalho, no centro da cidade. O metro, o autocarro e até a bicicleta são a minha independência face ao empecilho que é circular e estacionar a viatura! Há dias li no jornal sobre o bom ritmo a que vão as obras do metro na futura linha de Gondomar e lembrei-me de um velho e típico amigo, que usava no meu dia-a-dia, e que não sei porquê veio a desaparecer. Lembrei-me dos tempos em que invadia o Porto de troleicarro. Do longo caminho que percorria a pé, de casa até ao Alto de Soutelo, para esperar por eles, para os ver passar, parar e entrar naqueles autocarros estranhos. Primeiro eram os “pantufas”, pequenos carros eléctricos que a população assim apelidou por serem tão silenciosos. Anos mais tarde chegaram os italianos, de um e de dois pisos, que deslizaram pelas linhas electrificadas das ruas da cidade durante muitos e bons anos. Estes eram mais modernos mas um bocadinho barulhentos, principalmente quando o compressor funcionava, para não falar do característico ruído do travão de mão, conhecido pelo "réque-réque", que só travava realmente após a quarta ou a quinta puxadela!
Provenientes de S. Pedro da Cova e de Gondomar, as carreiras 11 e 12 serviam no transporte colectivo em direcção ao Porto, até ao Bolhão. Levavam-me para todo o lado, à baixa, ao cinema, às aulas, à namorada, à praia, ao trabalho, e eu que sempre viajava com cara de sono. Chegava quase sempre apinhado de caretas mal-humoradas a caminho dos empregos. A entrada fazia-se pela porta traseira do veículo, directo à “cozinha”, que se atropelava na ânsia de apanhar um lugar vago. Ninguém escapava ao “pica” que, entalado no seu cubículo apertado, conferia o passe ou obliterava os bilhetes. Eu subia sempre as escadas para o piso superior e ali, se houvesse lugar vago nos bancos da 1ª fila, sentia-me um privilegiado, mas a única vantagem era psicológica. O troleicarro andava sempre lento e muito atrasado, mas mesmo assim eu julgava triunfar sobre o tempo perdido. Talvez espiar os outros passageiros e transeuntes fosse a melhor das distracções. Ainda que fosse difícil alcançar as raias do tédio, com uma vista panorâmica sobre o reboliço urbano não era difícil para o comum passageiro, como eu, dormitar até babar! Refastelado nos desconfortáveis assentos de napa vermelha, eu observava o deslizar passivo do pachorrento veículo, preso aos cabos eléctricos, pelas ruas estreitas e atafulhadas de automóveis, de gente egoísta ao volante das suas obrigações, preocupada com o seu umbigo e com medo de perder a prioridade nos cruzamentos. Gente que provavelmente não se sente feliz com nada, que nunca tem tempo a perder, e cada vez há mais gente assim.
Estes amigos do ambiente transportavam passageiros carregados de compras da Rua de Santa Catarina e do Bolhão. Neles entravam aos magotes os alunos do Alexandre Nobre e do “Rainha”. No Bonfim subiam os que chegavam trazidos pelo comboio até Campanhã. Na Praça das Flores um grupo de operárias encarregava-se de trazer outra animação à viajem. Em S. Roque o solícito motorista aguardava uns minutinhos para que os passageiros fizessem o transbordo com o 88. E o metálico caixote cor de laranja baloiçava o caminho todo e muitas vezes rangia, até parado… “réque-réque réque-réque”, quando as varas se soltavam dos cabos. É claro que se perdiam preciosos minutos, mas quando temos de permanecer durante um certo período com outras pessoas dentro dos transportes públicos, a nossa disposição e capacidade de observação supera qualquer monotonia. Sobretudo à noite, quando não há o que ver pela janela, as pessoas são “obrigadas” a se vasculharem. Naquele alheamento natural, a distracção óbvia do jornal, do livro, do sono não é diferente aos que verifico nos dias de hoje. Agora há animosidade no ar, uma maior disputa por espaço, por dispersão. Uma necessidade absurda por evitar qualquer mínimo contacto com o passageiro vizinho. Recordando bem as faces das pessoas servidas pelo trolei das sete e meia, percebia-se que havia desconforto mas havia um notável sentimento de partilha, uma comunicação audível e sincera, onde os problemas da vida eram contados a rir e as cenas dos próximos capítulos da novela da vida surgiam com um "até amanhã se Deus quiser".