Debruçados na janela, os dois meninos não queriam perder pitada da paisagem que se descortinava à medida que o comboio avançava, lentamente, ao longo do rio, rumo a um paraíso desejado. Aquele cheiro quente, o bater das rodas de aço nas emendas dos carris, o apito da locomotiva como a pedir passagem, as diferentes perspectivas e curvas do Rio Douro pareciam retiradas de um deslumbrante e misterioso livro de fantasias. O revisor, barrigudo e de bigode farfalhudo esforçava-se por circular entre os bancos apinhadas de passageiros, a conferir os bilhetes. A tia Sílvia, que não se cansava de lhes recomendar “não ponham a cabeça fora da janela, é muito perigoso”, desta vez não teve contemplações e com um puxão pelos calções trouxe os rapazes de volta ao banco da carruagem. Para os dois pequenos irmãos, aquela viagem tinha um sabor a aventura. Eram tempos despreocupados, ainda mais quando nos princípios de Julho as férias grandes significavam passar o Verão à “terra da minha mãe”, como sempre disseram. Ali, todo um mundo de fantasias nascia a cada dia. De repente, livres dos livros e do colégio, sentiam-se como na pele de Tom Sawyer e o rio deixava de ser D’ouro para passar a ser um afluente do Mississipi, que acompanhava à imagem dos desenhos animados da sua meninice. “Preparem-se meninos, estamos a chegar”. O desembarque na estação da Ermida foi rápido, e antes mesmo da locomotiva apitar novamente anunciando a partida, de bagagens na mão, davam início à derradeira etapa da viagem.
O passeio seguia-se a pé, ao longo do trilho ferroviário, até se depararem com a boca escura e assustadora do túnel. Entraram corajosos e ultrapassaram a tenebrosa passagem, sem no entanto faltar um acto de rebeldia marcado com fuligem na indumentária do mais pequeno, enquanto o outro estava mais preocupado em encontrar um local apropriado para aliviar a bexiga. Acercaram-se de um canavial e desaguaram ali mesmo, sobre um carreiro de formigas que iam e vinham. Aliviados, tomaram a saída por um caminho que os levaria de novo a um fascinante e maravilhoso lugar, a fresca e verdejante foz do ribeiro, o Rio Teixeira. O calor que se começava a fazer sentir confundia-se com os aromas silvestres das flores selvagens que crescem agrestes na encosta do rio. Por vontade deles ficavam já ali, a escorregar na pedra grande e a mergulhar naquela água fria e cristalina, a pescar à cana com os pés de molho, a subir o ribeiro, pedra por pedra, até ao açude do moinho. Por momentos, o suave e relaxante som das pequenas cascatas fez-lhes esquecer a dureza dos caminhos que teriam ainda de percorrer, mas o barulho metálico de um comboio de mercadorias, que cruzava o arco da ponte de cantaria, despertou-os e embalava agora os seus passos pesarosos, apenas acelerados pelos ares do campo de uma solarenga manhã de Verão.
Quando chegaram à casa dos avós e dos tios, um pequeno povoado chamado
Lugar do Castelo -
oh mãe, já cheira a Castelo-, chegava com eles a alegria e os ares da cidade. A pouco mais de noventa quilómetros do Porto tudo parecia tão distante naquela época. E era a agitação dos reencontros familiares, o bater às portas dos amigos, o percorrer o caminho da fonte e trazer água fresca para casa, o prazer de colher e comer as laranjas de sangue do quintal da tia Elisa.. No dia seguinte, depois do despertar ao som do inesquecível matraqueado da máquina de tricotar fatinhos de lã da tia Sílvia, foram passar a manhã toda a correr e a brincar no campo do Travessado, enquanto o avô Zé Pinto regava o milho e as batatas. E às 13 horas, impreterivelmente, estavam todos sentados à mesa a saborear a comida caseira que a avó Madalena havia preparado enquanto entrelaçava açafates e cestinhas de piorna, arte que tia Carolina vem mantendo. E comiam tanto que depois repousavam à sombra da ramada, a dormir uma boa soneca ou a escutar no rádio os Parodiantes de Lisboa ou a rádio-novela. Junto com os adultos recordavam os momentos passados na eira, onde faziam a desfolhada às maçarocas do milho. Quando o raro milho-rei (maçaroca de cor avermelhada) saía a alguém havia festa garantida. Lembravam também como tinha sido boa a apanha da azeitona e planeavam as vindimas. Mas os rapazes já exasperavam impacientes de tanta conversa e não queriam perder mais tempo. O que lhes interessava era retirar os amigos das tarefas do campo e irem refrescar-se nas águas claras do ribeiro. Responsáveis, eles foram percebendo que saber esperar e respeitar as decisões dos mais crescidos é não só uma virtude como uma vantagem.
Com uma bacia carregada à cabeça, tia Sílvia e outras mulheres da aldeia desceram até ao moinho do ribeiro para lavar roupa. Com elas, felizes da vida, seguiram então os dois rapazes da cidade. Estavam finalmente livres para as suas aventuras, brincadeiras e pescarias com os seus amigos, e ali espaço para aventurar é que não faltava. Pinhais, vinhedos, horizontes e montes de se perderem de vista, cobertos de mato verde onde a passarada multicor musicava os seus gorjeios, e um ar leve com cheiro a ervas do campo e frutas amadurecidas lhes enchia os pulmões repetidas vezes. Nada é mais melancólico do que o entardecer no campo. Parece um outro mundo, outro sol e outro céu. No olival, sentado num tronco de oliveira caído, distraído com a construção do meu carroço (duas rodas de cortiça unidas por um pau de nogueira onde se encaixava em cunha uma cana que servia para a condução daquele brinquedo tão rudimentar), com o dourado do céu a anoitecer o rio, eu percebia a chegada sorrateira da chona. A passarada silenciava e procurava abrigo na ramagem do arvoredo, os grilos saiam das tocas, desafiando-se, e a lua respondia à chamada e encobria toda a natureza com seu capuz estrelado. E outro dia seria outro dia.