Pouco passava das 10 horas daquela manhã de Verão quando embarcamos, eu e o meu irmão Tó Manel, pela mão do nosso avô Zé Maria, em Campanhã, no semi-directo da linha do Douro, que tinha Barca D'Alva como estação terminal. A composição, rebocada por uma pesada máquina a vapor, poucos minutos depois já efectuava a primeira paragem em Ermesinde. Logo a seguir, flectindo para Leste, passou a marchar na via única da linha do Douro e efectuou nova paragem em Valongo. Na plataforma da estação, vendedeiras com cestas enfiadas nos braços, apregoavam:
-Quem quer regueifa!Como sempre, não faltaram compradores, tal como em estações seguintes, onde se ouvia apregoar:
-Água e bilha, 25 tostões!Faziam-se pequenos negócios pelas janelas das carruagens enquanto se escutava a repetida cantinela da idosa, pobre e cega, que implorava aos passageiros que lhe deixassem esmola. Lentamente o comboio chegou à estação de Caíde, o ponto mais alto da linha, e logo à saída atravessou o longo túnel deste nome. Depois das estações da Livração e do Marco de Canavezes atravessou outro ainda mais comprido, o túnel do Juncal, que com os seus 1622 metros é o maior de todos até à Barca D'Alva e o segundo mais extenso do país.
No seu contínuo descer, a linha conduziu a composição ao encontro do mais belo rio do mundo: o Douro. Com efeito, depois da Pala e já perto de estação de Mosteirô, a via torna-se vizinha do Douro. E com o comboio a marchar juntinho à margem direita do Rio, passa pela estação da Ermida, o local de desembarqu

e estivesse eu a dirigir-me à
terra dos meus queridos avós maternos Zé Pinto e Madalena, o lugar do Castelo. A partir daí passei o resto da viagem de pé, ligeiramente debruçado na janela, deslumbrado por tão inesquecíveis paisagens. Com um andamento mais acelerado, o comboio ia parando apenas nas estações principais. Nas proximidades de Barqueiros o granito deu lugar ao xisto e começaram a aparecer os primeiros vinhedos da “Região Demarcada do Douro”. Numa larga curva do Rio avistei o Peso da Régua e as suas duas pontes. Na estação o comboio fez uma paragem que durou o tempo necessário para o almoço e para a locomotiva ser abastecida de água.
Cerca de 30 minutos depois, a composição retomou a sua marcha, transpondo a ponte sobre o rio Corgo, no ponto onde ele desagua no Douro. Aqui a via estreita que levava o comboio até Vila Real e Chaves separa-se da via larga. A partir da Régua, o comboio passara a parar em todas as estações e apeadeiros e assim a viagem percorre lentamente o rio que se estende na margem. Na outra banda a velha estrada N222, os sucalcos reflectem-se no espelho das águas calmas do rio. Chegámos à estação de Covelinhas, que serve a aldeia de São Martinho de Anta, terra natal do grande poeta Miguel Torga. Sempre com os olhos postos na margem esquerda, via a Quinta dos Frades, mais adiante, na mesma margem uma fábrica de óleos vegetais, a estação de Gouvinhas e, depois do rio Távora e da estação do Ferrão, avisto as quintas de S. Luís, da Boavista e das Carvalhas.
Passado o Pinhão, ao transpor o rio Tua, ergui o olhar e avistei o perfil da ponte entre duas fragosas arribas da linha estreita do Tua. Logo a seguir, chegámos à estação que serve as duas vias. Aqui vi o acelerado movim

ento do pessoal e de passageiros que faziam o transbordo para o comboio que seguia até Bragança. E porque a paragem era demorada, ainda tive tempo de voltar a apreciar os belos azulejos com motivos regionais que sempre ornamentaram o frontispício desta, assim como os de todas as estações da linha. A partir do Vale do Tua erguem-se íngremes e escarpadas penedias, no topo das quais tem início o planalto de Ansiães que se estende até ao Sabor. No sopé da serrania o comboio para continuar na vizinhança do Rio tem que atravessar pontes, viadutos e sucessivos túneis como o da Rapa com 45 metros de extensão, cavado na rocha viva do enorme “Penedo das Letras”, assim popularmente designado por nas suas entranhas existir uma gruta ornamentada com as chamadas pinturas rupestres do “Cachão da Rapa”. E depois duma breve paragem no apeadeiro da Alegria, vizinho da “Quinta do Guilhar” e perc

orridos algumas centenas de metros, entrámos no ciclópico túnel da Valeira. Rasgado no mais duro granito dos alcantilados contrafortes do planalto de Ansiães. A possível visão daquela formidável explosão geológica só foi conseguida depois do comboio sair do túnel e descrever uma ampla curva, permitindo a avistar um cenário dantesco: a boca inteiriça do túnel e a “garganta” da Valeira, onde o torrentoso caudal corre estrangulado por entre milhões de toneladas de empinados fragões graníticos que na margem esquerda se erguem até 782 metros de altitude. Lá no alto já antes eu avistara o santuário de São Salvador do Mundo.
A via-férrea entra no Douro Superior através duma longa mas pouco acentuada curva que se estende pela borda da água e que, então, umas centenas de metros adiante, levou o comboio atravessar o rio em diagonal para a margem esquerda, através duma estrutura metálica: a velha e rabujenta ponte da Ferradosa, com uma extensão total de 412,5 metros.
Atravessada a ponte seguiu-se a paragem na estação de Vargelas, mais uns pequenos túneis até atravessarmos a ponte da ribeira da Teja, para logo a seguir o comboio parar no Vesúvio, apeadeiro construído para servir a quinta que lhe deu o n

ome. Após a partida do comboio observei o imponente e conservado chalé e apercebi-me, então, que este e outros edifícios da quinta com a sua cor branca contrastavam com a natureza envolvente. A seguir, na outra banda do Rio, adivinhava-se a povoado de Coleja e mais adiante, vi aparecerem mais e mais vinhedos, estes da Quinta de Lobazim.
Assim que o comboio passa a Ponte do Torrão o meu avô junta a bagagem e prepara a saída. Atravessada a ponte e centenas de metros adiante o comboio finalmente chega na designada Estação de Freixo de Numão, que serve também a população de Mós do Douro.

Aqui desembarcamos e o comboio seguiu o seu destino. Para o meu avó era o cumprir de apenas mais uma viajem, igual a tantas outras. Eu, ansioso por chegar junto de quem e de tudo o que me era saudoso, sai da carruagem carregado de desejos e vontades. Este facto tornou menos penosa a caminhada através do ladeirento caminho rasgado no espinhaço do enorme monte Janvão. Nas viagens que se fizeram depois, lembro que esse trajecto já se fazia por estrada num Mercedes novinho em folha, o único taxista da região vizinho do Tio Farrincha e Tia Ilda, a nossa querida madrinha.

Depois da escalada de quase 3 Kms, atingi a “lajeosa” e altaneira Portela, onde deslumbrado avistei o casario xistoso das Mós e ouvi o eterno urrar dos burros. Segui pelo Ninho do Corvo e desci o declive do Pombal, para mais depressa chegar à casa da avó Maria.
Enquanto durassem as férias, até às festas, sempre realizadas no terceiro fim-de-semana de Setembro, também nós eramos mosenses. Livres, aventureiros e curiosos. Contavam-nos histórias da terra, eram-nos apresentados primos e tias que nunca antes tínhamos visto. Em cima do "macho", animal cruzado do cavalo e do burro que vivia na parte debaixo da casa, essencialmente utilizado para o transporte de mercadorias, azeitona e amêndoa principalmente, e pessoas, conquistava-mos o mundo, o nosso mundo.
Bom fim-de-semana.