quinta-feira, setembro 11

já não é a mesma

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Há dias perdi-me. Encontrei-me num caminho de que já só guardava em memórias de infância. Deixei-me ir, a apreciar a paisagem. A apreciar-me menino a apreciar a paisagem. Já não há árvores onde antes existiam árvores. Casas onde não existiam casas. Há uma estrada onde antes era terra. A terra onde jogava à bola.

Passo pelas terras, mas que terras? Não é a mesma terra. Há caminhos esquecidos, há castanheiros e sobreiros, flores e cores, as mesmas cores, as mesmas videiras ao sol, e frutas maduras. As terras, são outras terras. Aquele pedaço de terra, outrora calcada num mar de pó, entre o canavial e a beira do caminho, onde jogávamos à bola quando havia bola. Era impossível enganar, a terra não nos deixava, metia-se castanha por entre os fios brancos das nossas meias, entranhava-se nos pés dentro das sapatilhas, rotas e gastas de tanta lavagem, da terra que não saia. Já não é a mesma terra. Já não se vê a terra.

Não tenho a máquina, não trouxe a máquina fotográfica. Queria continuar a caminhar mas gostava de estar aqui com a minha máquina como testemunha, e poder guardar tudo que vejo agora mesmo… Eu menino, sentado no muro junto ao tanque. Um tanque de granito cheio de água fria e clara, agora tépida e verde. O mesmo muro que era a nossa fortaleza em guerras lindas de gente pequena. A mesma fonte, do mesmo granito da vida, o fio de água pelo qual tanto trabalhou meu avô. Fortes eram os braços que a carregava em garrafões até casa. A mesma água que agora, dizem, é imprópria.

Ouve-se um comboio lá em baixo, lá longe. Avanço devagar, demorado até à casa de um desses pequenos guerreiros. Sei que já lá não mora. A mesma casa azul, com pássaros e trepadeiras a tomarem conta dela. Abrando o passo mas só escuto silêncio, não ouço a voz penetrante da Dona Olinda. A porta está aberta. Tenho receio de espreitar lá para dentro e não quero insistir... – Olhó Paulinho! E fiquei, refém.

Lá vou eu, de raminho de salsa na mão, caminho acima. Havia um cão, um cãozarrão que me fazia ter fogo nas pernas, por lá acima. Suspirei, afinal não passa de uma rafeirita de barriga grande, talvez a cuidar de ter ali mesmo a ninhada. O raminho de salsa inundava a minha mão, o meu coração, do cheiro da terra. E eu sem a máquina. Não me conseguia comover sem a máquina. A máquina que se recusaria a ver estes campos abandonados e tristes. A minha máquina que só ia focar as eiras onde brincávamos e distorcer o entulho amontoado na beira do caminho.

Algumas casas permanecem exactamente as mesmas, velhas e arruinadas. Outras herdadas e restauradas são casas de fim-de-semana, as vaidosas. Quase no fim do caminho, estreito e empedrado, paro em frente à mercearia. Na verdade não era uma mercearia, era a loja. A minha avó mandava-me à loja buscar aquilo que a terra não dava. A porta é a mesma, ainda com o degrau onde me sentava a observar o sol nos pés, a imaginar-me crescido quando fizesse dez anos, mas já não tem as mesmas coisas. Nem sei bem o que lá tem.

Faço a curva para a esquerda e entro pelo portão acolhedor da casa dos meus tios, heróis sobreviventes da mesma terra, envelhecida. Do mesmo lugar, firme. Os lírios do campo, de varanda virada para o rio, virada a nós. O caminho leva-me de volta pelo quintal, da mesma terra onde o meu avô viu brotar a água pura das profundezas. Caminho de volta. De volta à minha casa vaidosa, que foi deles, e me enche de recordações das tardes de histórias, dos mesmos jogos e sonhos. Volto, para os abraçar, para os sentir de olhos fechados. Não quero saber do limoeiro, nem do gato siamês, o chinês. Como não trouxe a máquina, acelero o passo, o mais que posso, para me esconder atrás dela.


12 comentários:

Ka disse...

lá, ó faxabôre...


Lindíssimo e sentido texto, só possível de ser escrito por alguém com a tua sensibilidade e pelo teu amor à terrinha com memórias tão bem guardadas :)

A vida é mesmo assim...tudo muda, não somos apenas nós que crescemos...mas o choque da mudança custa sempre não é? Ainda bem que guardamos cá dentro todas essas memórias!!

Beijosss

ps - adorei a música!!!
ps2 - e adora vou aqui abaixo tentar dar de comer aos peixeis :P

paulofski disse...

É mesmo Ka, tudo muda e isso é inevitável, custando muito ou pouco. O que custa realmente é que seja assim sem que dê conta, por não estar lá e poucas vezes voltar.

Beijinho

pc - adorei o teu comentário.

Rafeiro Perfumado disse...

Fizeste-me lembrar as sensações que tenho quando vou à minha aldeia, perto de Coimbra. Se antes o caminho até minha casa era uma alameda de árvores, agora é uma avenida de casas. Algo se perdeu, resta a lembrança da memória... Abraço!

Patti disse...

Nalgumas coisas que escrevemos, damos a conhecer aquilo que somos. Como tu aqui tão bem o fizeste e já nos habituaste.

Tudo passa e pouco resiste ao tempo, resta-nos as recordações como estas tuas.
Felizmente também tenho muitas como as que falas e faço muito para que a minha filha também as tenha e leve com ela toda a vida. Ainda amanhã vamos passar o dai inteiro em Lisboa, a andar sem destino de máquina fotográfica na mão, tipo turistas.
Fazemos isso, várias vezes durante o ano e ela adora.
E são estes dias que ela não esquece nunca, está sempre a pedir mais.

Bjs.

Sunshine disse...

Olá !!

Ao ler-te vi, de certo modo, passar um filme antigo, passar por sitios onde cresci e brinquei e ver tudo alterado. Ver o betão e o alcatrão tomarem conta dos espaços abertos onde se podia correr á vontade sem medo dos carros, onde podiamos estar sem medo de estranhos, porque todos eram conhecidos e amigos. Ver a mercearia do sr. zé transformada numa dependência bancária ... enfim uma melancolia infinita.
Resta a memória, essa fica intacta. Fecho os olhos e transporto-me para esses tempos.

Belissimo texto o teu, descreve exactamente o sentir da mudança dos tempos ...

Beijo.

PS: Vou dar uma volta no Gabinete :)

Gata Verde disse...

Fizeste com que me emocionasse...conheço bem essa sensação de "perda".

Beijoca

LeniB disse...

Sabes, Paulo...sempre que regresso à aldeia noto algo diferente: alguma casa das memórias da minha infância desapareceu, para dar lugar a outra mais moderna; a figueira grande simplesmente foi cortada porque a estrada tinha mesmo de passar por ali; a fonte onde ía buscar água também já não existe...secou.
Como diz a Ka, mudam-se os tempos. Porém, as minhas memórias permanecem intocáveis!
bjs

paulofski disse...

Rafeiro, do que sentimos falta fica sempre bem guardado nos recantos da memória.
Abraço.

paulofski disse...

Patti, turistas na própria terra, já vimos tudo e conhecemos tão pouco. Sempre encontramos algo diferente, o tempo é que passa por nós.
Beijos.

paulofski disse...

Sunshine, também dás conta disso! É a saudade.
Beijinho.

paulofski disse...

Gata, por outro lado a terra "desenvolve", mas já sem aquele calor humano.
Beijinho.

paulofski disse...

Sei Lenib... e às vezes apetece-me lá ficar, a viver.
Beijinho.