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Assistindo a toda esta tragédia com o paquete italiano Costa Concordia, envolvendo milhares de passageiros e tripulantes com mortes e desaparecidos registados, o que tudo leva a crer tenha ocorrido pela incúria e incompetência do capitão e tripulação, lembro-me do que se passou em Abril de 1988, bem junto à varanda da casa dos meus pais na praia da Madalena com o cargueiro japonês de bandeira do Panamá e tripulação sul-coreana, o Reijin. Na altura eu era um feijão verde, andava na tropa em Espinho, pelo que só vim a saber do acontecimento no dia seguinte, primeiro pela boca de camaradas da tropa e depois pela televisão. As notícias classificavam o Reijin como o “Titanic dos carros”. Com o recente acidente do navio de cruzeiro italiano também já ouvi o mesmo tipo de comparação infeliz, o “Titanic do Mediterrâneo”, talvez pelas semelhanças nas circunstâncias dos acidentes.

O Reijin fazia a sua viagem inaugural. Chegado a Leixões após viagem directa desde Nagóia, no Japão, o navio trazia a bordo uma carga milhares de automóveis japoneses, sobretudo da marca Toyota. Aportara em Leixões dias antes para descarregar algumas centenas de automóveis. Era um navio moderno, munido do melhor equipamento disponível na época. Tinha computadores e sistemas inovadores prontos a dar resposta rápida e adequada às situações, com pessoal supostamente treinado e preparado. Ao que foi dado saber, todo o know how tecnológico acabou por falhar quando foi necessário. Saiu do Porto de Leixões para o Porto de Vigo, a escala seguinte, sem proceder à reposição de lastro nos tanques, manobra essencial para a segurança do próprio navio. Sujeito à ondulação e em mar aberto, o navio tombou para a esquerda (a bombordo) e, incapacitado de recuperar o rumo e o reposicionamento, ficou desgovernado e à deriva. Empurrado lateralmente pelo vento norte, deslizou para sul da Foz do Douro, caindo sobre as rochas da Praia da Madalena que lhe provocaram rombos no casco e lhe fizeram o leito de morte. A tripulação foi salva, havendo a lamentar uma vida.

Nunca a Praia da Madalena havia sido tão popular. Nas semanas que se seguiram eram imensos os visitantes, engarrafamentos de carros, excursões de autocarros, curiosos vindos de longe com o garrafão de vinho só porque queriam ver o enorme barco de perto. Foi nessa altura que a expressão “ir ver o barco” se tornou popular, especialmente à noite no nosso grupo de amigos! E como era habitual no inicio do Verão, a malta juntava-se para uns banhos de sol e de mar na nossa praia,
a praia da minha vida, muito diferente do que é agora. Numa dessas tardes quentes, alguns dos mais corajosos lançaram o desafio e decidimos nadar até lá. Foram muitos os que visitaram o gigante adormecido naquele Domingo. À medida que nos íamos aproximando da sombra do monstro de ferro, recordo-me bem do cheiro intenso a petróleo que se sentia. Como fui dos primeiros a chegar ao "ponto de embarque", uma gaiola de protecção de um gerador eléctrico, saquei logo o meu souvenir, uma placa avisadora do perigo em que nos poderíamos meter. As autoridades marítimas não andavam por perto e, mesmo à mão de semear, lá estava uma escada de corda que nos convidava a subir. E subimos. Lá em cima as vistas eram deslumbrantes, tudo enorme, tudo de pernas para o ar. Mais ao fundo, duas portas deixadas abertas nos guiaram para uma visão assombrosa, a dos hangares do navio, escuros e misteriosos, repletos de carros pregados às paredes. Com a adrenalina à flor da pele entramos nos carros e ligamos as luzes. Bem, aquilo iluminado era imenso, estranho e assustador. Entre buzinadelas e gritos de excitação trouxemos de lá vários objectos, desde chaves, ferramentas, escovas, tampões, sei lá mais o quê! Só rezava para que nenhum de nós caísse naquela medonha escuridão. Regressamos depois à praia com o que pudemos trazer, algumas chaves guardadas nos calções e o que pudesse flutuar. Quando chegamos à areia contamos a nossa aventura a quem lá estava, que nos ouviu incrédulos sem saber o que andávamos a tramar, pois da praia ninguém nos podia ver com o encandear do sol a pôr-se por detrás do navio.

Começou entretanto o desmantelamento do Reijin. O navio foi considerado perda total, bem como todos os veículos embarcados. À medida que desmantelavam o navio, eram retirados automóveis aos magotes, por gruas enormes, directamente para batelões, sendo depois transportados para uma área onde hoje jaz o maior e único sucateiro do mundo, completamente submerso. Meses mais tarde com as marés vivas e os temporais do Outono e Inverno o mar desfez o que restava da carcaça do navio. O impacto ambiental foi imenso e todas as praias de Gaia, até para lá de Espinho, foram conspurcadas com peças de automóveis, óleos e todo o lixo do navio. Ainda hoje se encontram facilmente alguns vestígios enferrujados dos carros presos às rochas, memórias do que outrora fora uma inesquecível aventura de Verão.
(falta apenas mostrar o souvenir que guardo do Reijin, agora colada na porta do quarto do meu filho)