sexta-feira, agosto 5

crónica do pedal a Santiago

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Três dias, cinco bicicletas, muitas mochilas, duas ladys e três ciclistas malucos: começava o “Plano Ciclístico até Santiago de Compostela” ou “Uma Trip do Carago”, como lhe preferiu chamar o tasqueiro. Poderia dizer que tínhamos resolvido finalmente fazer alguma coisa, que o nosso lado aventureiro falou mais alto que a preguiça que o cagaço e todas as outras desculpas (para cruzar os braços) juntas, mas a verdade é que mais alto o que falou mesmo foi a vontade de andar de bicicleta, da conversa fiada, de amigos que ficamos (já que eu pouco os conhecia), do tempo de ignorar o relógio, o telefone, a esposa e o filho, raras chances de ficar à toa por um caminho em nada aleatório. De chegar lá, afinal. Por alguma razão se desistiu mas nós fomos e vencemos, as subidas, as pedras, a sede, a lentidão. Nada que se pareça com aquela sensação que temos do objectivo alcançado. Não somos melhores nem piores, fomos capazes. Não quero c
onvencer ninguém a nada, nem dar palmadinhas nas nossas próprias costas. Quero mesmo é convidar todos a percorrer o mesmo caminho. Como foi? Incrível.

Engraçado que antes da viagem, descobri que existem perguntas padronizadas e que me foram feitas. Antes de mais nada vamos a elas e às suas respostas politicamente correctas:

1 – Vais pagar alguma promessa?


Não, decidi viajar de bicicleta por prazer, para experimentar novas sensações e conhecer pessoas e lugares.

2 – Quanto tempo de viagem?

O tempo é relativo. Sabe-se que na física t = d/v, ou seja, quanto maior a velocidade, menor o tempo, até mesmo porque a distância é uma constante, relativa mas é. Logo nosso plano foi cumprir parte do Caminho nos dois dias disponíveis. No primeiro de Viana até Redondela e no segundo até Compostela.

3 - Quantas horas de pedal?

Isso aí só saberíamos no dia (contas mal feitas à posteriori foram quase 20).

4 – E como voltarão?

De comboio, isto é, se nos deixarem colocar as bicicletas no porão da carruagem e se a CP mantiver a ligação de Vigo ao Porto.

5 – Vocês são loucos!

Sim, se querer viver e gozar dela é ser louco, então somos!

Vamos ao que interessa…

Então e por imperativos de agenda, tivemos que encurtar a viagem um dia. Assim, e parafraseando o tasqueiro, em vez de partirmos do Porto, decidimos partir de Viana, entrando no Caminho propriamente dito, em Tui.

Após uma curta noite de sono (a minha foi em claro) o despertador dispara, hora de levantar. Corpo ainda pesado pelo sono porém a alma eufórica pela novidade. Banhos tomados, estômagos forrados, hora de prender os últimos penduricalhos na bicla e partir no nevoeiro, cumprindo o trajecto num ritmo bem tranquilo entre Viana e Valença, paralelo ao mar e ao Rio Minho. Já em Cerveira haveríamos de fazer uma pausa em casa de um dos companheiros de route, para almoçar, refrescar e degustar meia melancia que já nos havia proporcionado boas risadas.

Demoramos a retornar à estrada e antes de chegar a Valença tivemos um ensaio da beleza e dureza do que iríamos encontrar em cima de uma bicicleta cheia de tralha. Despedimo-nos de terras lusas e entramos na Galiza, iniciando o Caminho propriamente dito pelas ruas íngremes e medievais de Tui. A minha bicicleta era agora um veículo internacional.

Podem crer, foi bom sentir o peso da bicla nos braços quando fui obrigado a descer as escadas e passar o pequeno túnel do Convento das Clarissas Enclausuradas. Depois o caminho passou a ser feito por belas trilhas rurais, bosques, pontes medievais, subidas e descidas por atalhos de pedra, gravilha e pó. Após sair de Porrinõ chegou a pior parte do Caminho, uma longa e feia recta que rasga uma horrível zona industrial. Neste ponto do percurso o grupo já se havia desagregado, porque a diferença de ritmos entre os bravos do pelotão e as majoretes era abismal.

Antes da alucinante descida para Redondela, onde iríamos pernoitar, tivemos o primeiro grande prémio de montanha, com um metro de língua para fora, e o milagre do dia. Após uma longa e extenuante subida que nos deixou de rastos, vários quilómetros percorridos mais a empurrar a bicla do que a pedalar, assim, no meio do nada, eis que surge o milagre. Não, não era uma visão, era mesmo real. À beira da estrada uma máquina de bebidas frescas esperava a nossa chegada que, à custa duns euritos, nos retribuiu com o justo prémio pelo nosso esforço. A chegada a Redondela fez-se já com as luzes ligadas, em velocidade e ferocidade. Fome saciada fomos dormir e repor um pouco das energias para encarar o dia seguinte que começaria bem cedo.

Com mais de 90 km nas pernas, saltamos da cama com uma disposição óptima para atacar muito cedo os 80 e tal que faltavam do Caminho. Trouxas arrumadas e amarradas depois de um reforçado, o objectivo passava por impor um ritmo mais forte do que o do dia anterior, portantos, combinamos que o grupo seguiria a dois ritmos diferentes, tendo como ponto de encontro Santiago, ou Vigo (onde iríamos dormir). Reinicia um sobe-desce sem fim, cansativo, porém recompensado com uma vista lindíssima que só quem está numa bicicleta pode parar, observar, ouvir os sons, sentir os cheiros e realmente experimentar cada sensação do momento. A Ria de Vigo, a Ilha de S. Simon, Árcade e a medieval Ponte de Sampayo, paisagens lindíssimas, povoados medievos de encantar e descidas perigosas.

Depois, bem, depois é que foram elas. “Estes Romanos eram mesmo loucos”, disso não tive dúvidas. Num dos bosques mais bonitos do caminho, de Canicouba até Briallos, a estrada romana deu-nos cabo do toutiço. Pedras enormes gastas pela erosão do tempo que não nos deram tréguas. Se as biclas já pesavam toneladas, então é que foram elas quando as tivemos de empurrar calçada acima e por bastante tempo. Depois as trilhas amenizaram um pouco o nosso esforço dando uma certa tranquilidade e um certo ar bucólico ao local. Encontramos muitos peregrinos que prosseguiam o Caminho a pé.

Mais tarde decidimos parar e forrar o estômago, tomando um pouco de humildade ao conviver com dois peregrinos oriundos da longínqua região de Natal, no Brasil.

Depois de um constante sube-sube, sígue-sígue, bendita a hora que avistamos a Taberna “O Muiño” à entrada da vila termal de Caldas de Reys. Era chegada a hora de atestar o depósito, deixar as bichas descansar e desenferrujar um pouco o portinhol.

"Precioso, ballé. Bem, e agora como é que me levanto!"

Mas o que tem se ser tem muita força e logo para recomeçar uma sequência de pedala um pouco, desce e empurra a bicicleta. Pedala mais um pouco e empurra novamente, e vai assim até ultrapassar esse obstáculo. Talvez esse trecho tenha sido o mais cansativo da viagem, fisicamente e emocionalmente. Fisicamente porque começa uma sequência de subidas e descidas, emocionalmente logo após uma subida descia um pouco automaticamente se ficava à espera quando viria outra subida.

Incrível era ver aquela plaquinha indicando o caminho e a distância remanescente, que renovava o ânimo no espírito, pois progredíamos e conseguiríamos ir até aonde nossos sonhos permitissem. Pausa para mais um descanso e algumas fotos.

"Falta pouco! Ufa!"

Eis que após mais alguns minutos de pedalada, finalmente chegamos ao nosso destino. Passo pela Porta da Faxeira que dá acesso à Rua do Franco onde o fervilhar de peregrinos e forasteiros circulam nas ruas entre tasquinhas e restaurantes com tapas de encher o olho. Calmamente circulamos no meio já com um ar de satisfação até que eu desmonto da “Etielbina” tiro os sapatos e ponho os pés de molho na Praça do Obradoiro repleta de gente.

O que ganhei com a viagem?

Momentos com amigos, momentos divertidos, convertidos. Experiências novas. Novos lugares, novas sensações. Vi e vivi que quando se quer se consegue. As dificuldades existem, como as que encontramos, o segredo é saber como lutar contra elas.

Existem caminhos que só se descobrem vivendo e eu segui pelo mesmo caminho. O proximo já vem a caminho. Até lá.



10 comentários:

Anónimo disse...

São estas experiências que realmente valem apena e nos ficam na memória para sempre Paulo.
Tenho a certeza que nunca mais a vais esquecer
A única viagem longa que fiz de bicla foi na Argeninam entre Salsa e Jujuy, já próximo da fronteira com a Bolívia. Houve muita coisa que correu mal, mas nunca mais esqueci a parte boa. Das más, agora até me rio.

Rui disse...

Excelente reportagem ! Deu para fazer uma ideia das dificuldades ! :))
Um "marco" atingido e vencido, que nunca mais se esquece e a "pedir" uma nova aventura !
(nota negativa para a bjeca ! :)) Em vez dela talvez uma outra bebida energética sem álcool ! ) :))
Parabéns !
.

paulofski disse...

É de facto inesquecível Carlos. Felizmente que a viagem correu às mil maravilhas, nem um furozinho ou uma corrente partida para apimentar a jornada. E regresso a casa fizemos o planeamento da repetição da viagem, desta vez por completo lá pra Outubro ou Novembro. E o Caminho Francês está também nos nossos planos. Abraço.

E que dificuldades Rui, imensas que a certa altura, depois de beber litradas de água e líquidos energéticos azulados a bejeca fresquinha repôs um pouco do nosso espírito. A Super Bock deu-nos asas. Abraço.

paulofski disse...

Ena, ena, a nossa trip até já tem honras de reportage aqui:


http://jpn.icicom.up.pt/2011/08/05/de_viana_a_santiago_de_compostela_em_duas_rodas.html

Nanda disse...

Paulo quem pedala por gosto não cansa.
Correu tudo bem é o que importa.
Foi mais um sonho realizado.
Um abraço e muitos beijinhos, para vós.

Laura disse...

Bem, antes de mais, que é feito das miúdas? deixaram-nas para trás?

Coisa linda, é preciso força, coragem, fácil é falar, difícil pedalar por tão maus caminhos... gostei de te ler.

Um abraço e Parabéns, a recordação fica para sempre.

laura

paulofski disse...

Obrigado mãe, quem pedala por gosto não cansa.

paulofski disse...

Teve de ser Laura se não nenhum cumpria a etapa. Ficaram para trás nos dois dias mas lá se safaram. No primeiro dia apanharam um taxi e no segundo chegaram de combóio.

Rafeiro Perfumado disse...

Fantástica a aventura, não menos a reportagem. Mas há uma coisa que não posso perdoar: voltar de comboio?!? Fraquinhos...

redonda disse...

Parece ter sido mesmo uma aventura incrível...eu fiquei cansada só a ler a parte das subidas :)