sexta-feira, fevereiro 4

um eléctrico chamado velho [2]

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(A Praia de Matosinhos) - foto: Filo Ladeira

Naqueles dias quentes e tórridos das grandes férias de verão da nossa infância, caso eu o meu irmão ainda não tivéssemos ido para a aldeia ou para um parque de campismo, havia um destino mais do que desejado, a praia. E a praia de eleição era a Praia de Matosinhos. O ponto de encontro por excelência naquele extenso areal era na Bola da Nívea. Num instante já estávamos a banhos de sal e de sol, nas corridas e partidas de futebol, a piscar o olho às miúdas, tudo num convívio descontraído com os amigos de sempre. Um cardápio perfeito para se absorver todo aquele imenso tempo livre que tínhamos. Mas não é da praia que quero falar. Como prometi no poste anterior resolvi contar a viagem mais radical que fiz da minha inconsciente, ou inconsistente, adolescência, vivida a bordo (!!!) de um eléctrico da Linha 19.

(O 19 na rotunda do Castelo do Queijo, a fortaleza ao fundo. Do outro lado é visível o que restou do petroleiro Jacob Maersk, a proa encalhada nas rochas da praia) - foto: Bahnbilder.de

O sol baixava lentamente o seu pano prateado sobre o oceano, no final de uma dessas maravilhosas tardes de praia. Era hora de voltar para casa. Com a pele temperada de sal, sandálias nos pés cobertos de areia, mochila pesada às costas, eu e o Geno seguíamos para a paragem do autocarro com a conversa solta. Íamos tão distraídos que nem demos conta que os outros estavam com pressa. O normal seria apanharmos o 88, pela Circunvalação, só que o resto da malta e o meu irmão resolveram ir ao centro comercial Brasília, na Boavista. Talvez nos tenhamos esquecido, já não sei. Vai daí, todos eles entraram no carro eléctrico que estava na paragem, pronto a sair. Depois, foi um corre-corre louco para alcançar o 19 que já iniciava a marcha. Chegados bem perto do veículo percebi que aquilo estava pior que sardinha em lata, não cabia mais ninguém, nem mesmo nas escadas. O eléctrico a acelerar nos carris e eu a ficar para trás. Mas o Geno foi rápido a decidir. Saltou para as escadas da outra porta e atirou-me o desafio: – "Anda lá, sobe para aqui". Eu que estava prestes a perder o fôlego, não calculei o risco e,  instintivamente saltei para o cavalo de madeira. Apoiei um dos pés no ferro do atrelado e agarrei-me com as mãos no sarilho metálico que recolhe e enrola a corda da vara de trólei, sem sequer imaginar no sarilho em que me estava a meter. Logo eu, um inexperiente na arte da "gunisse", estava ali em transgressão, e bem lixado por sinal. Para além de umas aventuras malucas na bicicleta, ou nos carrosséis de cestas, nunca antes havia experimentado tão radical aventura. E o eléctrico acelerava em direcção à rotunda do Castelo do Queijo, transferindo toda a sua energia cinética para o meu corpo. O peso da toalha molhada que carregava na mochila puxava-me para baixo, as sandálias escorregavam da barra de ferro, os braços resistiam mas os dedos ardiam de dor. - Porque é que isto nunca mais para! Pensava eu enquanto sentia lágrimas a escorrer no meu rosto. Só não percebi se seriam do vento ou do terror que sentia. Olhava para o Geno e ele ali, na maior das calmas. Olhava para os paralelos da estrada que passavam debaixo dos meus pés cada vez mais ameaçadores. Olhava para a janela em desespero mas não via nada. Eram mínimas as hipóteses de evitar um valente trambolhão e vir a ser passado a ferro pelo carro que seguia logo atrás... Até que, como que por um milagre, recebo um socorro inesperado de um qualquer anjo da guarda. A janela do eléctrico desceu abruptamente e de lá de dentro saíram duas vigorosas mãos que me agarram os braços e me puxaram para cima. Logo logo o eléctrico desacelerou nas agulhas para entrar na rotunda e parou para largar e receber passageiros. Ainda com as pernas a tremer e imobilizado de medo, prometi-me, ali mesmo, que voltaria a entrar nos trilhos. E entrei, entrei no eléctrico porque nunca mais andei pendurado nele.

(Os gunas do carro eléctrico) - foto: Museu do Carro Eléctrico

Mãe e Pai, eu sei que vão ler este relato pela primeira vez. Muitas das aventuras por que eu e o Tó passamos só não as contamos na altura para não vos preocupar, acreditem. E quero que se lembrem que caso reprovem este inconsciente comportamento, o que é natural, estou quase nos 45. Portanto, tenho já idade suficiente para não ficar de castigo!


11 comentários:

redonda disse...

As minhas praias foram Francelos e Leça.
Nunca andei assim de Eléctrico :) E a única vez que tentei saltar do trólei em andamento caí :(

Rafeiro Perfumado disse...

Fizeste bem, pois arriscavas-te a em vez de ter uma vida a bordo dele, a ter um enterro debaixo do dito.

Abraço!

Laura disse...

Ai jasus, mas que carga de porrada não ias levar, ó meu inconsciente, isso era lá coisa que se fizesse? e essas mãos vigorosas, agradeceste-lhe? acho que a tua mãe ainda te vai puxar as orelhas ao ler isto, rapaz desmiolado, minha nossa, já imaginaste se caías?
Bom, já passou...

Beijinho da laura e juizinho se faz favor, tens cara de quem é capaz de arriscar outra vez...

Teté disse...

Oops... nunca andei à pendura num eléctrico! Quer dizer, só um bocadinho... Pronto, OK, várias vezes! Mas pelo menos tinha os pés assentes no estribo e ia agarrada ao varão lateral, porque no teu caso nem percebi onde ias pendurado... :)

Bom fim de semana!

Anónimo disse...

Pendurado, nunca andei, mas desci a Av da Boavista ao volante de um eléctrico. Foi há tantos, tantos anos, que até pode parecer irreal, mas foi verdade.

paulofski disse...

Olá Redonda. Qualquer uma dessas já foi a minha praia. De há uns (muitos) anos a esta parte é na Praia da Madalena que estendo a minha toalha.

paulofski disse...

É verdade Rafeiro, e isso era um choque pior do que acabar engomado pelas rodas do carro!

Abraço.

paulofski disse...

Olá Laurinha. Acho que a minha minha mãe ainda não leu sobre esta minha rebeldia infantil (está com um grave problema eléctrico lá em casa e sem acesso ao computador). Quanto a quem pertenciam as mãos que me salvaram nunca cheguei a saber, o mais certo por eu estar envergonhado.

Beijinho.

paulofski disse...

Olá Teté. Pois eu agarrei o sarilho metálico que recolhe e enrola a corda da vara (se clicares na foto vê-se uma peça branca mesmo por cima do farol na frente eléctrico). O que eu não sabia era que o matal estava afiado, o que me magoava imenso os dedos. Quanto aos pés, posei-os no ferro, que se vê na parte debaixo do veículo, e que serve para engatar os atrelados. Depressa descobri que as sandálias não eram o melhor calçado para este tipo de aventura e que o peso da mochila me estava a arrastar para a queda. Mas felizmente livrei-me de boa e aprendi a lição.

paulofski disse...

Viva Carlos. Ao volante de um eléctrico não se se andei mas guardo na memória a imagem de estar ao lado do meu tio Farrincha (foi guarda-freios da STCP) a subir a Rua de Júlio Dinis.

FM disse...

Tenho que voltar a andar numa "coisa" destas... Há que anos, ou melhor, há que décadas!
Abraço.