Agora, na era dos telemóveis, dos esse-eme-esses, da internet e do correio electrónico, o que sobra para o carteiro deixar na nossa velha caixa do correio? Contas para pagar e pouco mais. Que crueldade lhes fizeram ao nos dar todo um mundo online, um vazio de pensamentos e de sentimentos perfumados! O romantismo de receber uma carta de escrita cuidada, das mãos de um mensageiro a pedais, é um romantismo extinto. Ontem foi o Dia do Carteiro e hoje adornei este texto com mais um ícone da sétima arte, o Carteiro de Pablo Neruda, quebrando o lacre de um envelope de memórias, de uma esperança teimosa, numa viagem com cartas na sacola até um tempo onde o carteiro ainda era um mensageiro pelas aldeias. De uma aldeia com personagens reais, familiares, que me deram inspiração para criar estas pequenas histórias.
O carteiro é uma esperança ambulante. No bucho da sua sacola de couro não se conhecem classes sociais, não há lugares distintos, não há idades. Ali todos se conhecem, todas as línguas se falam e todos se entendem. Uns o esperam com receio, outros com entusiasmo. Numa espera macia e suave. Assim, aquela saudade agoniada ficava ali mansinha. Olham o relógio, mas havia um horário mágico para se olhar. Se não acontecesse, se não se ouvisse o trim-trim e o nome gritado bem alto pela mesma voz, só na outra semana, quem sabe. Não havia endereço, nem número da porta. Apenas um nome e o lugar.
Tia Ilda vai cantarolando, enquanto estende a roupa no quintal. E canta de cor, quando o carteiro chega com uma carta na mão e grita o seu nome: - Dona Ilda, Dona Ilda, chegou carta para si. - Para mim! Ai, há quanto tempo eu não abria uma carta! Uma letra miudinha e torta do seu afilhado trouxeram-lhe saudades e muitas lembranças ao pensamento. E as lembranças são como as cerejas, em que umas puxam as outras e tudo se vai adocicando. Depois vem o carinho imaginado, as mãos trémulas que acariciam o papel, o canto do parágrafo borrado por uma lágrima descuidada: - Ai que querido, meu rico filho! Ouve António, eles vêm cá passar o verão...
Tio Farrincha debruça-se com cuidados de artesão sobre a folha de papel branco e desenha uma caligrafia bonita, ornamentada, que enche de orgulho o antigo guarda-freios. Reclinado na velha cadeira de nogueira enaltecida no terreiro de luz, relê manuscritos transparentes de tão fininhos, guardados num subscrito com as bordas verdes e amarelas: "Aeropostal, par avion". Com o vagar e a minúcia de uma caneta de tinta permanente, escreve palavras pensadas, sentidas na alma mesmo. Contorna o sobrescrito com a língua, para acicatar a goma que sela as palavras gravadas, e dá uma última lambidela no selo postal: - Toda a gente me gaba a letra, aventa ao carteiro com um sorriso sonoro que lhe empina o bigode. – Pegue, é para a minha irmã que vive no Brasil.
À soleira de outras portas, cartas de amor são recebidas, como as de antigamente, que já ninguém escreve, e que trazem retratos amarelecidos com a usura do tempo. - Menina Fernanda, esta cartinha veio para si. Com o coração acelerado pela secreta emotividade em querer rasgar logo o envelope, ela resiste e guarda-o no peito como se um tesouro fosse, na irreprimível esperança de ler os escritos de amor antes de pontuar uma imensa saudade. A conversa solta-se e ele revela-lhe: - Sou eu que as leio a maior parte das vezes! Sei da vida de quase toda a gente, já viu menina! E ainda arranjo tempo para conversar e dar atenção às pessoas. Lembra-me a minha mãe que era das poucas que sabia ler e escrever, e assim ganhava mais uns trocados para alimentar cinco filhos. Lia e escrevia as cartas do povo. Terei lhe herdado o jeito ao que parece!
No vale fértil encaixado entre montes, as amendoeiras em flor vão estendendo aquele manto branco que a todos envolve na pertença da terra e na promessa de boas colheitas. Parece um postal ilustrado, como aquele que vou bisbilhotando no maço de cartas que o carteiro carrega. - Mas este postal é da Borgonha e vem escrito em francês!: “Chérie, je suis en Dijon et il fait froid…”. O sol morno ilumina as ruas íngremes, as casas e janelas aferrolhadas parecem escondidas à coscuvilhice. O silêncio é apenas interrompido pelo coro desafinado dos cães que parecem anunciar a vinda do carteiro. Para ele, longas são as horas que pedala, em contra-relógio, para fazer toda a distribuição. Pára ali, espreita aqui, petisca acolá, pedem-lhe o favor que deixe uma encomenda na estação de comboios. Só que o relógio continua a ditar a sua tirania e mais vale dar corda aos sapatos antes de cair o breu da noite. Numa aldeia solitária, um carteiro é sempre uma boa companhia, e ainda por cima uma companhia rotineira, diária, pontual. O café central serve para se inteirar que o Sr. José Maria não está porque foi para a cidade, para a casa do filho.
Depois de um copito do mata bicho para amaciar o gasganete, tem ainda de fazer uma última visita. Atravessa a ribeira, levanta a cabeça para a paisagem que se ergue no horizonte onde prosperam o xisto e as oliveiras, segue para uma casa isolada onde vive a viúva de um antigo pastor. A chegada do carteiro com o vale da sua magra pensão, representa um momento de alívio e felicidade, bem ilustrada no rosto da velhota, que desce a custo as escadas de pedra. Nestes locais mais isolados, a passagem do carteiro era uma réstia de vida e de esperança. – Olhe, já há dias que não falava para ninguém, diz-lhe a velhota. De ninguém ela espera uma carta, mas o carteiro traz-lhes a memória fugaz de um tempo em que as pernas e a vontade eram vigorosas. Um sorriso assoma nos lábios da velha que há momentos se vergava sobre a panela de três pernas: – Quer uma sopinha de couves? Parecem saber a pouco, estes breves momentos em que o correio distribui sorrisos que ninguém mandou, em que entrega palavras que ninguém escreveu...
Depois de um copito do mata bicho para amaciar o gasganete, tem ainda de fazer uma última visita. Atravessa a ribeira, levanta a cabeça para a paisagem que se ergue no horizonte onde prosperam o xisto e as oliveiras, segue para uma casa isolada onde vive a viúva de um antigo pastor. A chegada do carteiro com o vale da sua magra pensão, representa um momento de alívio e felicidade, bem ilustrada no rosto da velhota, que desce a custo as escadas de pedra. Nestes locais mais isolados, a passagem do carteiro era uma réstia de vida e de esperança. – Olhe, já há dias que não falava para ninguém, diz-lhe a velhota. De ninguém ela espera uma carta, mas o carteiro traz-lhes a memória fugaz de um tempo em que as pernas e a vontade eram vigorosas. Um sorriso assoma nos lábios da velha que há momentos se vergava sobre a panela de três pernas: – Quer uma sopinha de couves? Parecem saber a pouco, estes breves momentos em que o correio distribui sorrisos que ninguém mandou, em que entrega palavras que ninguém escreveu...
No final do dia do carteiro revela-se um coleccionar de histórias, como se fosse uma daquelas máquinas Leica em que se gravava a memória efémera de um instante a preto e branco: - Cada dia tenho uma nova história para contar. Da poesia gerada pela natureza e a sua magia que me inspiram. Fazem-me lembrar um outro poeta e um outro carteiro. Pablo Neruda e o seu carteiro encantado pelas metáforas, da mesma forma que deslumbra a tela colorida desta paisagem, desta “minha” terra, enquanto levo no bojo da sacola as cartas, de quem Neruda dizia: “quanta verdade tristonha e mentira risonha uma carta nos traz”.
7 comentários:
Gostei deste texto.
Tive a sorte de receber muitas cartas antes de serem substituídas por e-mails.
Infelizmente, agora só vêm contas (e cada vez menos, porque muitas já vêm por factura electrónica), e uns cartões no Natal. Durante todo o ano, limitei-me a receber 3 postais, de amigas de férias! E esses sim, deram-me muita alegria! :)))
Quanto ao carteiro de Pablo Neruda ando há anos para ver esses filme, mas está difícil, agora que os clubes de vídeo estão a fechar (o meu já fechou)! E não está no Meo! Um dia destes faço como os putos... ;)
1-li agora que estiveste com uma p. duma gripe. Lastimo! Acredito que já estejas recuperado e que a gaja tenha morrido definitivamente!
2-com excepção de algumas (poucas) facturas que ainda me chegam via CTT, já não recebo cartas nem postais, faz tempo.
E é verdade que, por serem raras, o receber uma carta ou de um simples postal pode tornar-se num acontecimento importante.
Mas as tecnologias não se padecem com "floreados"; nem "a pressa" com que queremos chegar lá onde quer que seja!
Akele abraço pah!
Falem por vocês, eu continuo a ter a caixa de correio (normal) cheia todos os dias. Ele é publicidade ao Lidl, Continente, Conforama, Aki, IKEA, Pizza Hut e mais uma porrada delas!
Coitados dos putos de hoje, que o único trim-trim que ouvem é quando escolhem um toque semelhante no telemóvel.
Abraço e parabéns pelo texto, está excelente.
Cartas, escrevo poucas, mas continuo a escrever muitos postais para alguns amigos, de sítios por onde passo.
Tenho saudades do carteiro e dos momentos que mediavam entre a entrega da carta, a leitura do remetente, para confirmar se era aquela que eu esperava, e o início da leitura.
Hoje, as caixas do correio recebem contas e publicidade. Em breve, provavelmente, só mesmo publicidade.
Que Grande contador de Histórias me saiste miudo...
Gostei do To Farrincha a "guarda freio"...eh..eh
Abç Mano
Então menino Tó, não me digas que não sabes que o guarda-freios é o condutor de eléctricos!
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