Na esquina da praça ele permanece mais a sua carreta fumarenta, a motorizada. Aguenta horas a fio em pé, ao frio, a vender castanhas. Assim é, pelo menos há mais de cinquenta anos. Pode até ser este o último São Martinho de fuligem colada ao rosto. Passeantes de ocasião, pessoas amigas, de sempre, fregueses que dele gostam e ternamente o chamam de Zé Velhote, brincam com ele e compram as castanhas que ele tão bem sabe assar. São cada vez menos os clientes mas as minhas castanhas são sempre quentinhas e boas, não tem uma podre, garante enquanto enrola uma página amarela. Uma dúzia não é? Se tivesse em trocos é que era bom! Até esquece as dores nos ossos das artroses cada vez que guarda os euros, e sorri percebendo as minhas mãos que aquecem do cartucho das suas castanhas. Os anos não lhe roubaram o humor mas o fumo do assador enegrece-lhe a face. Ele sabe como agradar e em cada cartucho põe uma ou outra a mais. A preocupação com a venda faz com que se levante de madrugada, para ir aos fornecedores, para escolher e retalhar as castanhas. O velho corpo há muito que se ressente da dureza do trabalho. Estava a ver que hoje a motorizada não pegava! Danada ainda me fazia perder o dia! É do frio e está velha como eu. A diaba custa a pegar e já não estou com forças para ela. Sabe, sempre ajuda à minha reforma mesquinha! Sempre é melhor que nada, e assim dá para a conta da farmácia. É vida de pobre, solta, resignado. Não tem pregões porque não gosta de chamar ninguém. Os fregueses ainda vêm, sabem quem eu sou. Muitos conhecem-me bem. Até os turistas gostam de provar as minhas castanhas, murmura enquanto desenferruja algum vocabulário castelhano. Este deve ser o último! Já apanhei muito frio e muita chuva, carreguei muitos carregos. Sinto que já não posso! Vou guardar estas aqui, levo-as para mim e para a minha pinga. Bom São Martinho...
Deslizo num eléctrico que vai
Deitando chispas verdes pela boca.
Um D. Pedro a cavalo todo ruivo
Da irradiação fantástica do Douro.
O comboio no túnel solta um uivo
Que S. Bento diz ser de bom agouro.
O fuminho cheiroso da castanha
Faz-me perder de vista, de repente.
E comê-las do bolso não me acanha.
Ó fraterna cidade, dá-me a face
Tão velha, sem idade, adolescente,
E que em qualquer pessoa eu te abrace!
Eddie Vedder - Guaranteed
À praça, como um íman, me atrai
Essa agulha dos Clérigos barroca.Deslizo num eléctrico que vai
Deitando chispas verdes pela boca.
Um D. Pedro a cavalo todo ruivo
Da irradiação fantástica do Douro.
O comboio no túnel solta um uivo
Que S. Bento diz ser de bom agouro.
O fuminho cheiroso da castanha
Faz-me perder de vista, de repente.
E comê-las do bolso não me acanha.
Ó fraterna cidade, dá-me a face
Tão velha, sem idade, adolescente,
E que em qualquer pessoa eu te abrace!
José Ames
Eddie Vedder - Guaranteed
21 comentários:
E por acaso é uma profissão que mais tarde ou mais cedo deve acabar, pois só se vê nela, velhos.
Mesmo assim, estes últimos Invernos têm sido pouco rigorosos e menos frios.
Na Baixa de Lisboa, também andam por lá sempre os mesmos todos os anos.
Aí pelo Norte falta o Verão, não é?
Chovia a cântaros.
Belíssimo este teu texto!
Uma boa homenagem Paulofski, como só tu sabes fazer. Tenho pena que acabem e sejam substituídos pelos meninos da vodafone a dar castanhas :S
beijinhos
Eles, velhos ou novos, marcam o tempo, o calendário da cidade, e melhor do que ninguém sabem como a cidade vive.
Beijinho Patti.
E se chovia Gi, agora está um sol lindíssimo.
Beijinho
Pois é Ka, deveriam dar telemóveis não achas? :P
Beijinho
Bom S.Martinho, já comia uma castanhinha... risos
Bjnhs
Triste país este, onde os velhos não podem ser velhos.
Um abraço.
Tomara que a figura do assador não desapareça com os tempos modernos...
Bom S.Martinho
Hoje comi umas 8 ou 10 lá na rádio... já estavam frias mas souberam "pela vida". Adoro castanhas assadas na rua... mesmo que sejam a €2 a dúzia + 1 sempre de oferta.
Abraço.
E quentinha e boa, não é Xanda?
Beijinhos
É mesmo Rafeiro, já não se pode ser velho!
Dois abraços
Tomara gatinha, tomara, mas ao jeito que isto vai!
Beijinhos
Sabes Francisco, ontem à noite estive na fila do assador na esquina da Praça do Marquês, pelo menos meia hora ali ao frio e ao fumo à espera das minhas 3 dúzias que chegaram a casa ainda bem quentinhas. Estas ficaram-me por 1,5€ a dúzia e sem recheio!
Abraço
Olhar atento de um Homem da "cidade"..bela homenagem a estes homens e mulheres, que além de manterem viva uma tradição com largos anos, também conseguem dar uma lição de vida...sabes, ontem em Braga ví um "amolador",e truxe-me à memória o mesmo som quase todos os sábados passava lá por casa na nossa infância. P.S estes também mereciam uma homenagem.
Abraço Mano
Paulo,
tirei uma castanha, que sobrou! :)
é bom falar das tradições aos nossos filhos, é bom ir com eles ao encontro das poucas ainda vivas... obrigada por este post!
mariam
Parabéns pelo texto, Paulo. Excelente!
É verdade Tó, e recentemente ouvi passar um amolador na minha rua. Da próxima vez vou procurá-lo.
Abraço irmão.
Mariam, fico feliz por teres gostado.
Bjs.
Pedro, fico feliz por teres gostado.
Abraço.
É uma época do ano que gosto bastante: as cores misturadas com vários aromas, o fumo, os pregões...enfim, esperemos que certas tradições não desapareçam, embora as castanhas estejam cara comó caraças!!!
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