segunda-feira, outubro 24

o gavião

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João da Silva conta cinquenta e sete anos de uma vida vivida de peripécias e azares. Seis foram os filhos que Margarida lhe dera e todos vivos graças a Deus. Afinal foram eles o maior tesouro que a vida lhe concedeu. Outro é o relógio de bolso e respectiva corrente, herança única de seu pai, coisa que o orgulha de sobremaneira. Dantes não o dispensava na sua indumentária mas desde que a fortuna o livrou de uma ponta e mola, que não o tira do fundo do baú.

Estamos em Outubro, os dias são mais pequenos, de manhãs húmidas e frias, a altura do ano que mais aprecia, coisa que faz com que João da Silva dê mais valia à sua samarra e às botas alentejanas. Já se aperaltou e antes de sair pela porta da rua, passa os lábios na testa dos mais pequenos. Uma lágrima se solta rebelde do canto de cada olho. Enxuga-as e agarra a mala como se nela transportasse uma vida. Verifica nos bolsos se nada lhe falta. Num dos bolsos é o lugar da carteira, dos documentos e fotos dos que mais quer, mesmo que amarelecidas pelo tempo. No outro guarda um hábito que desde jovem faz questão em perseverar. Se o cigarro, já se sabe, faz mal, para ele é um indispensável confidente com que engana a solidão. E para poder sair à rua só falta conferir uma coisa! Quase se esquecia do porta-chaves.

É na rotunda das oliveiras, lá prás bandas do sobrado, que tem encontro combinado. Chegou primeiro, pousou a mala e acendeu um cigarro. Os minutos foram passando, os cigarros sendo devorados, os nervos sucumbindo ao ciclo das passadas. Com o tempo, foi ficando cada vez mais retraído, mais taciturno. E quando surgia um carro na curva levantava-se. Quem surgiu foi o astro-rei que já lhe clareava os pensamentos, marcando um novo sulco na sua enrugada figura. Um carro deteve-se junto dele. Depois dos cumprimentos da praxe, um dos seus novos companheiros disparou: - Vamos lá vá, entre, entre, já estamos atrasados.

A partir desse dia abandonou com ar desiludido a família e um mundo unicamente habitado por si e pelos seus fantasmas. Sonhava que seria a passagem para uma vida a sorrir, dar o salto, passar a fronteira para terras francesas, onde tudo era novo e estranho a começar pela língua. Ia à procura de uma vida melhor que a miséria por cá vivida para regressar depois por vontade própria ao povo a que pertence, esperançado, com as suas mãos contribuir para a construção de um Portugal melhor.


4 comentários:

Patti disse...

Cada vez mais, com os tempo que correm, me aflijo que estórias destas se possam repetir como outrora, onde eram, infelizmente, triviais.

Rafeiro Perfumado disse...

Essa de guardar o relógio no baú lembra-me o meu pai, que tirou as jantes ao carro para que não lhas roubassem. Passados uns anos encontrou-as a um canto da arrecadação, todas ferrugentas.

Abraço!

Gi disse...

Este é o cenário que regressa às nossas cabeças ... só que, naqueles tempos, havia uma Europa sã para onde ir, agora, estão todos mal e à crise económica, juntou-se a crise social e só falta mesmo a crise política que levou às situações das duas grandes guerras.

Enfim!

PS1.: Obrigada pela pronta resposta ao meu apelo no blogue (olha que é diário). :)

PS2.: Tens um post no teu mural do FB, onde preciso, igualmente, da tua ajuda (só uma vez). :)))

Obrigada.

Anónimo disse...

Já falta muito pouco para recuramos "literalmente" a um tempo que pensávamos nunca mais voltar. Estas histórias vão repetir-se, infelizmente...