sexta-feira, março 4

como é da natureza das coisas a culpa morrer solteira em Portugal

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Passaram dez anos. A frágil e centenária ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, desmoronou-se à passagem de um autocarro que transportava gente da região de Paiva, de regresso de um passeio às amendoeiras em flor, seguido de três automóveis. A pedra e o ferro cederam, o caminho acabou abruptamente no vazio, a meio da ponte, e ninguém chegou ao seu destino. A fatalidade aconteceu e arrastou 59 pessoas para a correnteza furiosa do Douro. Morreram todos. Uma dor profunda tomou conta dos que perderam os seus queridos familiares e amigos. O País em lágrimas assistiu em directo pelas televisões às operações de resgate de corpos e viaturas. Sem poder enterrar 36 das pessoas desaparecidas as famílias enlutadas trataram de cuidar dos vivos, lançando uma associação social de apoio aos mais carenciados e às crianças órfãs da região.

«Ninguém podia prever uma coisa daquelas e quem o proclama, mente», considerou o inspector de bombeiros Salazar Galhardo, que presenciou o colapso. «Se soubessem que a ponte ia cair, não tinham arriscado uma manifestação em cima dela com autocarros e uma série de automóveis», acrescentou, numa alusão a um corte de trânsito ali ocorrido meses antes em protesto pelos maus acessos a Castelo de Paiva. «O que fez cair a ponte foi o Inverno rigoroso e a necessidade de abrir simultaneamente as comportas de duas barragens, a do Torrão, no Tâmega, e de Carrapatelo, no Douro». «A ponte situa-se a jusante da confluência dos dois rios e uma olhadela atenta para as correntes dava para perceber que batiam directamente no pilar que ruiu. Se não fosse essa circunstância ainda lá hoje passávamos», garante.

O atraso da construção de uma nova ponte configura responsabilidade política dos sucessivos governos desde 1986. Vários projectos de reconstrução foram sucessivamente colocados na gaveta pelos governantes. O alarmismo dos autarcas da região tornou-se ensurdecedor assim que começaram a aparecer relatórios técnicos alertando para a degradação da estrutura. Os areeiros estavam licenciados para extraírem os inertes pelas entidades competentes. A sucessão de cinco cheias intensas nesse Inverno. Uma acumulação de causas, quer naturais, quer devido a negligência de diversos serviços levou à tragédia.

No plano político, o acidente provocou a imediata demissão do então ministro do Equipamento, Jorge Coelho. Em relação à responsabilidade civil foi assegurada pelo Estado que assumiu ressarcir com indemnizações.

«Na minha opinião, a Justiça só foi até onde a deixaram ir. Ou seja, o processo para mim foi manipulado», disse Horácio Moreira, ex-líder da Associação de Familiares das Vítimas de Entre-os-Rios. Considera ainda que, face à prova que lhe foi apresentada, o tribunal de Castelo de Paiva agiu bem ao absolver os seis técnicos arguidos. O processo tinha 29 arguidos: cinco técnicos da antiga Junta Autónoma de Estradas, o responsável por uma empresa projectista, 22 areeiros e o antigo presidente do Instituto de Navegabilidade do Douro.

"O mais triste disso tudo, é que se aquele ano não tivesse sido tão chuvoso, a ponte ainda era a mesma. Mas como houve mortes por manifesta negligência no tocante à manutenção da ponte, construída há mais de cem anos para o trânsito de carroças puxadas a cavalos, fizeram-se duas. Triste sina de um país em que é preciso morrer gente para se agir!". Para a população, isto não passa de “um rebuçado” para atenuar as críticas, mas que, de forma alguma, atenua a dor daqueles que perderam os seus familiares. Volvida uma década depois da tragédia, há famílias que nunca conseguiram fazer o luto, por falta dos corpos que nunca apareceram. A mágoa perdura.


5 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

E podem dar-se por felizes por não terem processado as famílias das vítimas, acusando-os de terem familiares gordos que provocaram o colapso da ponte.

Teté disse...

A incompetência de todos os envolvidos, que tinham por obrigação zelar pela manutenção da ponte. Mais os tais areeiros a retirarem aos poucos a base de sustentação da mesma. E depois todos a sacudirem a água do capote. E um ministro a demitir-se, para se instalar ainda melhor na vida...

Enfim, a vergonha do costume!

paulofski disse...

E os afluentes do Douro ou talvez processar o S. Pedro! É país que temos Rafeiro .

paulofski disse...

Teté, os areeiros tinham licenças para essa actividade. Se foram devidamente fiscalizados isso eu já não sei. De promessas vãs está povo cheio.

Anónimo disse...

O desastre de Entre-os-Rios foi apenas mais um exemplo, como muito bem dizes, do desleixo luso. Varremos os problemas para debaixo do tapete e ficamos à espera que ninguém vá lá ver.
Mas a tragédia pôs a nú outras situações que refiro nm post sobre o assunto, a publcar daqui a umas horas.Como a constatação de que a maioria dos 19 membros do gverno que lá se deslocaram nunca terem ido a Castelo de Paiva e, uma boa parte, nunca se ter deslocado ao Norte...
Bom fds