Era já de noitinha. Meio sonolenta e cansada, depois de um árduo dia de preocupações e preparativos em casa, caminhava agora por uma cidade deserta. Generosa deixou os filhos em descanso com os avós e vai em paz, pensando na vida, nas suas maleitas, observando quem nunca dorme, as árvores e as pedras da calçada. O seu destino é a igreja e o desejo de se juntar ao coro para cantar canções natalícias na missa do galo. As portas das lojas há muito que estão fechadas, as pessoas reunidas em suas casas, e nas ruas restam alguns resquícios de urbanidade: lixo ainda não varrido, passeios ainda não lavados, jornais do dia anterior por recolher, folhas secas levadas pelo vento, sonhos não trocados, sonos ainda não dormidos e despertares ainda não acontecidos. Dobra a esquina e passa junto à porta de um banco, um dos maiores. Do meio de alguns caixotes de cartão, acumulados a um canto, escuta tosse, muita tosse. Era impossível não dar com ele e observá-lo no seu sono e no encolhimento do seu corpo, acolhendo-se em si mesmo naquela posição fetal em que nos deitamos quando estamos desprotegidos ou abandonados. Ele dorme ali, escondido por um cão que lhe cobre as pernas encolhidas, e uma manta colorida que lhe serve de cobertor para o dorso e para o rosto. Generosa abranda o seu caminhar e aproxima-se lentamente.
Agacha-se com as mãos juntas por entre os joelhos dobrados, com cuidado para não o acordar, mas o seu coração dispara sobressaltado com o latido alarmante do cão. - Não se assuste minha senhora, ouve de uma voz cavernosa, ele é mesmo assim, assustadiço. - Peço perdão se lhe invadi o sono e o acordei, lamentou-se ela. - Ah, não faz mal, eu não estava a dormir e até estava de olho em si, diz-lhe o homem ao mesmo tempo que se revela, erguendo-se do leito improvisado. Mas subitamente o coração dela dispara e um nó aperta a sua garganta que seca. Vê um peluche numas mãos pequenas a sair do cobertor. Detêm-se sem palavras, desalentada com aquela cruel realidade. - É a minha filha, diz ele, já tão crescidinha e ainda brinca com bonecos, veja só! Generosa senta-se num banquinho perto da criança que dorme profundamente. A imagem daquela menina, já uma pré-adolescente, ali exposta aos rigores da madrugada fria, deixa-a dividida com um milhão de palavras e sentimentos que gritam na sua mente, imaginando como pode, se ela tem cama, casa e amor para dar aos seus filhos? Como é horrível estar-se assim!? Está na presença de uma sobrevivente, distante do seio materno, do aconchego do colo da mãe. - E a mãe, pergunta-lhe sôfrega? - Já cá não está… responde ele secamente. Não se preocupe minha senhora, já nos habituamos a aguentar o frio. - Mas e essa tosse? - Ah, quando chegamos a uma certa idade, qualquer pontinha de vento ou de humidade não perdoa, mas não vai ser esta maldita bronquite que me vai derrubar. - Devem estar com fome? - Não, obrigado por se preocupar mas não temos fome. Lá no albergue não nos faltam com nada e felizmente comemos sempre bem. Desta vez até trouxemos uns docinhos que sobraram da ceia de Natal...
Quedou-se em silêncio...
Eu sei o que está a pensar. Não é um presépio perfeito, pois não é! Não o escondo e nem tenho medo de admitir que já tive de mendigar. A má sorte e uns quantos vigaristas fizeram-me cair nesta miséria. E há por aí tantos como nós, mas ao contrário de muitos eu não me perdi na depressão e me entreguei à bebida ou às drogas. Não desisti de mim. E não desisti de procurar um futuro para ela... diz-lhe, enquanto ajeita o cobertor. Generosa escuta-o comovida - As portas fecharam-se para mim, sabe? É verdade, não desejo bom Natal a ninguém, não desejo... nada!... Estou amargurado porque só nesta época é que se lembram de quem precisa. Ela ouve-o agora com outra expressão. - Para mim isto do espírito natalício não faz sentido e até o considero hipócrita. Eu sei que nos outros dias não se anda a desejar mal uns aos outros mas será assim tão difícil ser-se solidário durante o resto do ano? Eu penso que não. Quando a saúde nos falta é que se torna tudo mais complicado. Mas quantos e quantos têm saúde, e vivem na pobreza? Quantos e quantos têm forças para trabalhar e vivem tristes e fracassados? Pessoas simples, que lutam muito, mas pouco conseguem. Quantos e quantos vêm o esforço de uma vida inteira desaparecer de um dia para o outro... e olha de soslaio para o edifício bancário. - É preciso erguer a cabeça, digo para mim mesmo. É lamentável quando confiamos e acreditamos piamente nas pessoas que depois, sem razão, nos viram as costas. Para quem apenas o dinheiro tem valor... De mim já espero pouco mas não como um fracassado. Espero viver o resto da vida de cabeça erguida e não vou sossegar enquanto não alcançar o cume desta montanha. Os grandes vencedores não são os que acertam à primeira, mas os que persistem até vencer. E olhe que paciência não me tem faltado...
Volta a imperar o silêncio. E ela, sem nada dizer, ouve mais isto da boca dele:
Vá minha senhora, siga o seu destino. Mantenha essa pureza de sentimentos, acredite em si. Tenha paciência e não desista. Não olhe só para os seus defeitos, mas reconheça as suas virtudes e qualidades. Não importa onde está o ponteiro do relógio da vida. Apesar de não haver sorrisos e presentes o ano todo, é só querermos e conseguimos manter acesa a chama da bondade e da generosidade dentro de cada um de nós.
E, sem compreender muito bem o que tinha acontecido, Generosa lá foi de passo acelerado para as cantorias da igreja, pensando se tudo o que viu e escutou não passou de um sonho ou a mais pura realidade.
Agacha-se com as mãos juntas por entre os joelhos dobrados, com cuidado para não o acordar, mas o seu coração dispara sobressaltado com o latido alarmante do cão. - Não se assuste minha senhora, ouve de uma voz cavernosa, ele é mesmo assim, assustadiço. - Peço perdão se lhe invadi o sono e o acordei, lamentou-se ela. - Ah, não faz mal, eu não estava a dormir e até estava de olho em si, diz-lhe o homem ao mesmo tempo que se revela, erguendo-se do leito improvisado. Mas subitamente o coração dela dispara e um nó aperta a sua garganta que seca. Vê um peluche numas mãos pequenas a sair do cobertor. Detêm-se sem palavras, desalentada com aquela cruel realidade. - É a minha filha, diz ele, já tão crescidinha e ainda brinca com bonecos, veja só! Generosa senta-se num banquinho perto da criança que dorme profundamente. A imagem daquela menina, já uma pré-adolescente, ali exposta aos rigores da madrugada fria, deixa-a dividida com um milhão de palavras e sentimentos que gritam na sua mente, imaginando como pode, se ela tem cama, casa e amor para dar aos seus filhos? Como é horrível estar-se assim!? Está na presença de uma sobrevivente, distante do seio materno, do aconchego do colo da mãe. - E a mãe, pergunta-lhe sôfrega? - Já cá não está… responde ele secamente. Não se preocupe minha senhora, já nos habituamos a aguentar o frio. - Mas e essa tosse? - Ah, quando chegamos a uma certa idade, qualquer pontinha de vento ou de humidade não perdoa, mas não vai ser esta maldita bronquite que me vai derrubar. - Devem estar com fome? - Não, obrigado por se preocupar mas não temos fome. Lá no albergue não nos faltam com nada e felizmente comemos sempre bem. Desta vez até trouxemos uns docinhos que sobraram da ceia de Natal...
Quedou-se em silêncio...
Eu sei o que está a pensar. Não é um presépio perfeito, pois não é! Não o escondo e nem tenho medo de admitir que já tive de mendigar. A má sorte e uns quantos vigaristas fizeram-me cair nesta miséria. E há por aí tantos como nós, mas ao contrário de muitos eu não me perdi na depressão e me entreguei à bebida ou às drogas. Não desisti de mim. E não desisti de procurar um futuro para ela... diz-lhe, enquanto ajeita o cobertor. Generosa escuta-o comovida - As portas fecharam-se para mim, sabe? É verdade, não desejo bom Natal a ninguém, não desejo... nada!... Estou amargurado porque só nesta época é que se lembram de quem precisa. Ela ouve-o agora com outra expressão. - Para mim isto do espírito natalício não faz sentido e até o considero hipócrita. Eu sei que nos outros dias não se anda a desejar mal uns aos outros mas será assim tão difícil ser-se solidário durante o resto do ano? Eu penso que não. Quando a saúde nos falta é que se torna tudo mais complicado. Mas quantos e quantos têm saúde, e vivem na pobreza? Quantos e quantos têm forças para trabalhar e vivem tristes e fracassados? Pessoas simples, que lutam muito, mas pouco conseguem. Quantos e quantos vêm o esforço de uma vida inteira desaparecer de um dia para o outro... e olha de soslaio para o edifício bancário. - É preciso erguer a cabeça, digo para mim mesmo. É lamentável quando confiamos e acreditamos piamente nas pessoas que depois, sem razão, nos viram as costas. Para quem apenas o dinheiro tem valor... De mim já espero pouco mas não como um fracassado. Espero viver o resto da vida de cabeça erguida e não vou sossegar enquanto não alcançar o cume desta montanha. Os grandes vencedores não são os que acertam à primeira, mas os que persistem até vencer. E olhe que paciência não me tem faltado...
Volta a imperar o silêncio. E ela, sem nada dizer, ouve mais isto da boca dele:
Vá minha senhora, siga o seu destino. Mantenha essa pureza de sentimentos, acredite em si. Tenha paciência e não desista. Não olhe só para os seus defeitos, mas reconheça as suas virtudes e qualidades. Não importa onde está o ponteiro do relógio da vida. Apesar de não haver sorrisos e presentes o ano todo, é só querermos e conseguimos manter acesa a chama da bondade e da generosidade dentro de cada um de nós.
E, sem compreender muito bem o que tinha acontecido, Generosa lá foi de passo acelerado para as cantorias da igreja, pensando se tudo o que viu e escutou não passou de um sonho ou a mais pura realidade.
"Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação."
Charles Chaplin
Banda sonora: Foo Fighters - Home (Echoes, Silence, Patience and Grace)
Charles Chaplin
Banda sonora: Foo Fighters - Home (Echoes, Silence, Patience and Grace)
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