Faziam-se mais ou menos por esta altura. As férias decorriam ainda, saborosamente grandes. O vento soprava quente e trazia o aroma de fruta madura que invadia as nossas narinas. À época, usavam-se métodos tradicionais de cultivo ainda hoje transmitidos como uma imagem bucólica e alegre da vida no campo. Nos meus tempos de juventude, vivi com satisfação todo o ritual de tarefas do campo, como a época das vindimas que ocupa ainda uma grande parte das minhas memórias. Vindimar era um processo de várias etapas, todas elas comportando muito esforço e dedicação: apanhar, transportar e pisar as uvas para depois delas se obter o néctar da vida imbuído de uma sã alegria. No final seguia-se a derradeira etapa de armazenar o vinho em grandes pipas de castanho ou carvalho. Todo o tempo que eu e o meu irmão passamos na aldeia dos nossos avós “bebemos” dessa experiência, dessa alegria. Mas, é claro, não havia trabalho do campo que não tivesse esforços e canseiras. Embora eu fosse um grande mandrião, percebi o quão gratificante era para todos trabalhar em longas jornadas, desde manhã bem cedo até altas horas da noite, num sacrifício sempre feito com bastante alegria, para depois receber a dádiva da terra. E o vinho sempre omnipresente. Em cada trago valorizava-se o trabalho antes dispendido para o produzir e para o trazer até ali, à caneca, ao alcance do copo e da boca.
Sobranceira à margem direita do Douro, a aldeia dos meus avós fica na banda oposta a Resende, onde existem muitas quintas de grande tradição vinícola, dos vinhos verdes ao americano, do moscatel à água-pé. O “Travessado” é uma pequena quinta de três campos em socalcos, ensolarados a maior parte do dia onde o meu avô produzia uma parte do vinho, para consumo próprio. Estão rodeados de ramadas de vides em latadas de ferro e arame assente em esteios de granito, nas bordas dos campos, sendo o restante espaço reservado a culturas como o milho, a batata, o feijão, hortaliças, árvores de fruto e outras culturas sazonais. Mal a uva ficava madura eu não perdia tempo para provar as do “americano”. Tirava um bago de um cacho, branco ou tinto, espremia-o entre os dedos e o miolo saltava doce para a minha boca, hummm… e depois também provava o resultado agradável e fresco da mistura de várias castas.
Chegada a altura das vindimas, as pessoas dividiam-se ao longo das ramadas e apanhavam as uvas, à mão, com ajuda de tesouras. Os cachos eram colocados em pequenos cestos de verga e depois vazados para as gigas, uns enormes cestos de vime. Para o necessário transporte das uvas, um trabalho bastante duro devido ao declive do terreno e aos caminhos íngremes, prontificavam-se sempre os homens mais jovens que carregavam as gigas às costas até ao lagar na loja da casa. Era um trabalho repetido várias vezes enquanto houvesse uva para transportar. À noite, já com o lagar cheio, toda a gente de calças arregaçadas até às coxas saltava lá para dentro, para a pisa das uvas, tarefa que normalmente durava muitas horas. Lembro-me bem que no final, mesmo depois de bem lavadas as pernas e os pés, a comichão era desesperante e durava pelos dias seguintes. Seguia-se a fermentação do mosto e a parte que eu muito apreciava, a prova do vinho doce, o sumo aromático e saboroso da uva. A matéria que sobrava, o bagaço, era prensada e tudo muito bem aproveitado. O vinho era então colocado nos pipos a decantar e fazia-se a água-pé, um vinho mais leve resultante da mistura com água, ainda antes da fermentação, e que é tradicional no final da esfolhada do milho e pelo São Martinho para acompanhar as castanhas. O meu avô produzia uma água-pé de estalar, com um sabor fresco e trago suave. Quando o bagaço já estava quase seco, era retirado às postas da presa e esfarelado em gigas, seguindo de seguida para os alambiques para se produzir a famosa aguardente de bagaço, o “mata-bicho”. Extraída que era toda a aguardente, depois de bem seco, o bagaço servia também para estrumar os campos.
Concluído todo este processo, lá mais para o final do ano, o ciclo do cultivo recomeçava com a época das podas e reparação das latadas e ramadas. Mais tarde o tratamento com sulfato e monda dos cachos novos. Mais tarde, quando já pintava o bago, adivinha-se já nova vindima para o final do Verão. O ciclo da vinha, da vindima e do vinho, que o meu avô Zé Pinto me ensinou e eu felizmente vivi no tempo da minha meninice.
Sobranceira à margem direita do Douro, a aldeia dos meus avós fica na banda oposta a Resende, onde existem muitas quintas de grande tradição vinícola, dos vinhos verdes ao americano, do moscatel à água-pé. O “Travessado” é uma pequena quinta de três campos em socalcos, ensolarados a maior parte do dia onde o meu avô produzia uma parte do vinho, para consumo próprio. Estão rodeados de ramadas de vides em latadas de ferro e arame assente em esteios de granito, nas bordas dos campos, sendo o restante espaço reservado a culturas como o milho, a batata, o feijão, hortaliças, árvores de fruto e outras culturas sazonais. Mal a uva ficava madura eu não perdia tempo para provar as do “americano”. Tirava um bago de um cacho, branco ou tinto, espremia-o entre os dedos e o miolo saltava doce para a minha boca, hummm… e depois também provava o resultado agradável e fresco da mistura de várias castas.
Chegada a altura das vindimas, as pessoas dividiam-se ao longo das ramadas e apanhavam as uvas, à mão, com ajuda de tesouras. Os cachos eram colocados em pequenos cestos de verga e depois vazados para as gigas, uns enormes cestos de vime. Para o necessário transporte das uvas, um trabalho bastante duro devido ao declive do terreno e aos caminhos íngremes, prontificavam-se sempre os homens mais jovens que carregavam as gigas às costas até ao lagar na loja da casa. Era um trabalho repetido várias vezes enquanto houvesse uva para transportar. À noite, já com o lagar cheio, toda a gente de calças arregaçadas até às coxas saltava lá para dentro, para a pisa das uvas, tarefa que normalmente durava muitas horas. Lembro-me bem que no final, mesmo depois de bem lavadas as pernas e os pés, a comichão era desesperante e durava pelos dias seguintes. Seguia-se a fermentação do mosto e a parte que eu muito apreciava, a prova do vinho doce, o sumo aromático e saboroso da uva. A matéria que sobrava, o bagaço, era prensada e tudo muito bem aproveitado. O vinho era então colocado nos pipos a decantar e fazia-se a água-pé, um vinho mais leve resultante da mistura com água, ainda antes da fermentação, e que é tradicional no final da esfolhada do milho e pelo São Martinho para acompanhar as castanhas. O meu avô produzia uma água-pé de estalar, com um sabor fresco e trago suave. Quando o bagaço já estava quase seco, era retirado às postas da presa e esfarelado em gigas, seguindo de seguida para os alambiques para se produzir a famosa aguardente de bagaço, o “mata-bicho”. Extraída que era toda a aguardente, depois de bem seco, o bagaço servia também para estrumar os campos.
Concluído todo este processo, lá mais para o final do ano, o ciclo do cultivo recomeçava com a época das podas e reparação das latadas e ramadas. Mais tarde o tratamento com sulfato e monda dos cachos novos. Mais tarde, quando já pintava o bago, adivinha-se já nova vindima para o final do Verão. O ciclo da vinha, da vindima e do vinho, que o meu avô Zé Pinto me ensinou e eu felizmente vivi no tempo da minha meninice.
(a minha mãe a vindimar)
10 comentários:
Nunca gostei das vindimas admito. Os meus pais têm umas terras com videiras assim como os meus avós, sendo o vinho mais para consumo próprio do que para venda. De qualquer forma quando era pequeno mandavam-me apanhar baguinhos e eu queria era andar de escada a colher cachos de uvas. Agora ainda me perguntam se posso ir mas acabo por me esquivar sempre embora saiba que mais tarde vá dar valor… Abraços.
Nunca gostei das vindimas admito. Os meus pais têm umas terras com videiras assim como os meus avós, sendo o vinho mais para consumo próprio do que para venda. De qualquer forma quando era pequeno mandavam-me apanhar baguinhos e eu queria era andar de escada a colher cachos de uvas. Agora ainda me perguntam se posso ir mas acabo por me esquivar sempre embora saiba que mais tarde vá dar valor… Abraços.
Estás de parabéns (acredito eu) pela riqueza que possuis desse historial que presenciaste ao vivo!
Porque eu valorizo esses saberes e esses trabalhos.
Já assisti a vindimas mas nunca participei em nenhuma.
E pronto!
(Por acaso já bebia qq coisita...)
Abraço pah!
§-e parabéns tb pela tua mãe;
Só de pensar nas vindimas começam logo a doer-me as costas...
Abraço!
Grande texto! Em vários sentidos... :)
Mas essas recordações de infância ficam-nos para sempre, não é? Ainda por cima sendo um trabalho tão árduo, em que todos são convidados a participar, para obter o resultado desejado: o vinho (e seus derivados). Mas pronto, nunca participei numa vindima, mas tenho pena - cortar uns cachos de uvas no quintal da avó não conta para o efeito, não é?
Por outro lado, ao ler o teu post lembrei-me de um livro que li recentemente e decerto irás gostar: "A Fúria das Vinhas" de Francisco Moita Flores, uma história policial passada no tempo da Ferreirinha, nas margens do Douro... :)
Beijocas!
Adorei ler este texto, não só pela emoção da própria escrita, como pelas lembranças que me provocou.
E nesta altura ainda faltava tanto para começarem as aulas...
Linda Mãe!
E fiz algumas... do princípio até ao fim. Adorei ver a foto da tua mãe.
Abraço.
Ando numa de ir fotografar umas vindimas, em Borba ... terra da mãe do meu marido. Vamos ver.
Linda Mãe a tua.
Tantos cestos de uvas "Alombei" encosta acima naquelas escarpas do Douro..belos tempos
A Mãe está LINDA...
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