quarta-feira, setembro 21

a Ribeira Negra

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Um texto de Eugénio de Andrade sobre o painel Ribeira Negra, de Júlio Resende, em A Cidade de Garrett (1993)

Agora vinde cá, que vos quero dizer uma coisa. Como sabem, o grande cronista desta terra foi Camilo Castelo Branco, esse diabo, que não é tão feio como o pintam. Mas depois de Camilo vieram outros: o Ramalho, que era um homem de respeito, o Raul Brandão, que tinha um olho muito fino para os pescadores da Foz e para aquele mar, e já nos nossos dias, a Agustina, que fala do Porto ora com azeda melancolia ora com incomparável sedução. Mas a cidade tem outro cronista admirável, em que se não repara tanto por não se servir de palavras. É de Júlio Resende que estamos a falar. Agustina e Resende são em rigor contemporâneos, mas o olhar inquisitoriamente poético de ambos contempla realidades muito diferentes. O mundo que despertou o interesse da romancista é o da burguesia decadente, o da aristocracia rural, com algumas incursões às esferas da finança e da política; ou seja, um mundo pelo qual a pintura de Resende tem um soberano desprezo.

A gente a que o pintor sempre procurou dar corpo e alma, e que lhe sai ao caminho mal pega no lápis e no pincel, é aquela a que Fernão Lopes chamou arraia-miúda. Isto, que nunca passou despercebido àqueles que seguiram empenhados a sua obra, tornou-se pura evidência a todos quantos tinham olhos na cara a partir de Ribeira Negra, o magnificente historial da miséria e da grandeza da população ribeirinha do Porto, exposto pela primeira vez em 1984, no Mercado Ferreira Borges.

Há uma brutalidade nesta pintura, digamo-lo sem qualquer hesitação; brutalidade que consiste em obrigar-nos sem trégua a pensar que o homem é o mais mortal dos animais, que o seu corpo não cessa de ser corroído pela lepra do tempo, que o esplendor da sua juventude se converte com facilidade na mais grotesca paródia de si próprio, que tudo nele está inexoravelmente votado à morte.

É uma crueldade, é certo, mas a compensá-la há também em Resende uma infinita piedade por estas criaturas cobertas de farrapos, quase sempre mulheres envelhecidas muito antes de serem velhas, porque tudo lhes faltou excepto o mais amargo da vida, e a quem também coube em sorte, apesar de tudo, semear a terra da alegria.

Se pensais que exagero, olhai este painel de cerâmica, variações da anterior Ribeira Negra, que lhe encomendou a Câmara do Porto justamente para a Ribeira, num gesto análogo ao da Câmara de Barcelona para murais e esculturas de Miró.

Com mão aérea e certeira, o pintor, uma vez mais, povoou essa centena de metros quadrados de grés com as suas visões líricas ou dramáticas: crianças, mulheres, adolescentes, animais repartem entre si o espaço e o ritmo, a cor e a luz da sua cidade, com um lúcido ardor que é o outro nome da sabedoria. Posso garantir-vos que desde os seus primeiros trabalhos, toda esta figuração, vinda do mais rasteirinho da terra, estava destinada a ascender pela sua mão a essa suprema dignidade que só a arte confere. Eu creio que o que se faz aqui é mais do que perpetuar o rosto de uma cidade, de um país – é dar, apesar de tudo, algum sentido à vida.

Júlio Resende

Júlio Resende, “Ribeira Negra”, Porto, 1986
painel em grés cerâmico, 54 metros de comprimento
fotografia ho visto nina volare, 10.09.2007

Dois anos depois da exposição da tela original no Mercado Ferreira Borges, Júlio Resende executou o painel cerâmico com 54 metros de comprimento, que viria a ser inaugurado em 1987 na avenida Gustavo Eiffel, próximo do acesso ao tabuleiro inferior da ponte Luís I.


Júlio Resende

Júlio Resende, “Ribeira Negra”, Avenida Gustavo Eiffel
fotografia de Carlos Silva, 18.10.2009

"O painel Ribeira Negra é um abraço a um povo que reflete os ‘estados de alma’ de um rio único! Diante dele, elevam-se esperanças, em voos de gaivotas." (Júlio Resende)

5 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

Mas é um abraço que fica um bocado no ar, merecia um espaço mais condigno e acessível, não achas? Abraço, daqueles a sério.

paulofski disse...

Até que está bem acessível Rafeiro. Quem chega da Ponte, da marginal ou da Ribeira pode apreciar calmamente o painel. Quanto ao espaço escolhido foi talvez o mais aconselhável para "tapar" o que outrora foi um canto cheio de lixo. Por incrível que pareça este é um dos poucos monumentos que escapou aos sprays dos grafiteiros.

Um Abraço daqueles a sério

Teté disse...

Conheço mal a obra de Júlio Resende, mas gostei destes painéis que a ilustram.

Que o artista descanse em paz!

Anónimo disse...

Também escolhi a Ribeira Negra para ilustrar o post que escrevi sobre Júlio Resende, no dia da sua morte.
Concordo bastante com a interpretação que fazes neste post, Paulo. No dia ,à noite, vi uma reportagem sobre a visita que ele fez ao Bolhão e dellirei com a interpretação que as vendedeiras faziam da pintura que ele fez para a estação do metro
Aproveito para lembrar ao Reafeiro, que a pintura que está na origem da Ribeira Negra se encontra numa sala da Alfândega.

Kok disse...

O Senhor Júlio Resende foi um dos artistas que contribuíram para um esplendoroso ramalhete de distintas figuras portuguesas do século XX.
Não deixa de ser igualmente preponderante no século XXI.
Que não seja (como outros são) esquecido, pois não basta um painel em local mais ou menos visível e sem quaisquer referências ao seu autor.
Porque nem todos somos conhecedores...

1 abraço!