As lembranças não se limitam ao frenesim dos preparativos para a viagem, à paragem habitual que fazíamos a meio caminho, no reencontro com a velha estrada nacional serpenteada por nauseantes yésses, que a minha mãe nos confundia de "terem sido desenhados por um tal engenheiro inglês". Não basta o som explosivo de foguetes, compassado pelo eco que os devolvia da outra banda do rio. As lembranças levam-me à velha casa de pedra, onde o soalho encerado rangia sob os nossos passos e as louças tilintavam no interior do armário da sala. Levam-me ao pequeno buraco redondo, da madeira carcomida do quarto de onde podia espreitar o lagar da loja. Levam-me a uns sapatos finos, brilhantemente polidos de graxa preta, que secavam na soleira da porta. Trazem-me os raios de sol e a recordação infalível à interpelação da avó Madalena, que por nós esperava à porta da cozinha: “já lavaste as mãos?”. As memórias abrem-me uma pequena gaveta, da cómoda do quarto onde um relógio de bolso, prateado e virtuoso, ritmava um ténue tic-tac. Era aos domingos que a corrente metálica adornava e balouçava do bolso proeminente da jaqueta negra. E num sorriso fugaz, a cachimónia traz-me de volta uma prateleira da cozinha, que lá bem no alto segurava um copo de vidro onde a dentadura bicarbonada do meu avô repousava à noite. Até a afiada navalha de barbear, que ele manuseava com mestria em frente à sua janela, me surgiu num ritual intemporal. A mente leva-me a calcular o local exacto onde no pátio da casa estaria o tanque de pedra que, cheio com água do poço, passou a ser um aquário para os peixes dourados trazidos do rio.
A minha memória mais forte, a que o nariz capta. É do aroma trazido no ar e que me aflora num sentimento de nostalgia. É um cheiro bom e inspirador, de um tempo maravilhoso que jamais se apagará. Das doces lembranças de um Domingo na aldeia. Do arroz de forno lentamente cozido num alguidar de barro preto, onde pende a suculenta carne de pasto sustentada em pau de loureiro, e que nos grãos pinga dando-lhes aquele sabor da terra, característico da lenha trazida do mato. Tudo artesanal, tão natural como os temperos e ensinamentos herdados pelos meus tios.
Há cheiros que permanecem inesquecíveis, mas o que me leva de volta ao passado é a divisão da casa onde permanece a pedra. A frescura da loja, com o seu lagar e constante grau de humidade, usada como adega, onde se guardam as pipas, as batatas e alguns objectos em desuso, mas que foram úteis nas mãos sábias dos meus avós, que viveram uma vida dura, lenta e repleta de simplicidade, e que pelo menos uma vez pelo Verão, nas férias grandes, eu e o irmão desassossegavam.
Lembra-me da minha mãe, e que “já cheira a Castelo!”
A minha memória mais forte, a que o nariz capta. É do aroma trazido no ar e que me aflora num sentimento de nostalgia. É um cheiro bom e inspirador, de um tempo maravilhoso que jamais se apagará. Das doces lembranças de um Domingo na aldeia. Do arroz de forno lentamente cozido num alguidar de barro preto, onde pende a suculenta carne de pasto sustentada em pau de loureiro, e que nos grãos pinga dando-lhes aquele sabor da terra, característico da lenha trazida do mato. Tudo artesanal, tão natural como os temperos e ensinamentos herdados pelos meus tios.
Há cheiros que permanecem inesquecíveis, mas o que me leva de volta ao passado é a divisão da casa onde permanece a pedra. A frescura da loja, com o seu lagar e constante grau de humidade, usada como adega, onde se guardam as pipas, as batatas e alguns objectos em desuso, mas que foram úteis nas mãos sábias dos meus avós, que viveram uma vida dura, lenta e repleta de simplicidade, e que pelo menos uma vez pelo Verão, nas férias grandes, eu e o irmão desassossegavam.
Lembra-me da minha mãe, e que “já cheira a Castelo!”
11 comentários:
Tens uma riqueza nessas tuas memórias, negadas a quem nasceu e viveu sempre em grandes cidades.
Eu (também) sei a que te referes.
Abraço!
Adorei mergulhar nessas tuas memórias e ir revivendo as minhas, de menina da cidade que num período das férias grandes se mudava para a aldeia. São memórias que não deixo que me abandonem!
Tenho saudades desse tempo,não como neto,mas como genro.
Que os meus netos recordem um dia as férias como tu.
um abraço
Que emoção filho.
Manteres tão viva a recordação dos teus avós e da casa onde nasci.
Beijos
Para completar os comentários de Familia: Estou a imaginar a emoção dos Pais (especialmente da Mãe) a ler este Teu post...por uns minutos, enquanto lia, viagei no tempo e consegui sentir a presença dos Avós entrei de novo na velha casa, voltei a viver as brincadeiras, e embora com alguma nostalgia, é nestes momentos que percebemos a sorte que tivemos na nossa infância para poder desfrutar de tudo aquilo, incluindo os trabalhos que o Avô nos "obrigava" a fazer...quanto mato nós "roçamos"...as bilhas de água que transportamos às costas da fonte até que o depósito enche-se...as vindimas...são muitas e boas lembranças.
Obrigado pela Viagem
Abraço Mano
Obrigado por permitires viajar nas tuas memórias.
Bem hajas.
Bjinhos
Quando vou à aldeia dos meus pais passo sempre pela primeira casa deles, onde o meu pai e irmã nasceram. Foi vendida, transformada, mas as memórias continuam lá. Muitas vezes tenho vontade de entrar, para ver se ainda há o "quarto escuro", a única divisão que não tinha luz natural excepto por um vidro no tecto, onde ocasionalmente o sol batia, através das telhas de vidro.
Sim, há memórias que nunca se esquecem. Abraço, Paulofski.
Gostei de viajar pelas tuas memórias e ao mesmo tempo avivaste as minhas!!! Thanks!
Abraço
sem dúvida que somos feitos de passado....
obrigada pelo comentário :)
Sei que aos 15 de Abril foi o teu dia de "saída".
Porque és um (+ 1) carneiro, o signo só tem a ganhar com isso.
Amigo Paulo, um abração de parabéns; mas mesmo daqueles abrações!!!
Bem..., também não é preciso apertar muito...
Ah, e já agora e porque é o dia, que o teu fêcêpê te dê a alegria que desejas!
Fiquei toda arrepiada :) As memórias são o que nos tornam vivos e o que faz com que valha a pena viver cada minuto ao máximo e assimpreservar as melhores recordações.
Bj,
(i)
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