Estava no terceiro ano do ciclo e faltariam talvez uns três meses para as férias grandes. Nessa época, as crianças ainda não se consideravam gente só porque tinham a chave de casa ou porque voltavam sozinhas da escola a pé ou de autocarro. O pai pesou-lhe os ombros de responsabilidade quando acedeu ao seu pedido de prescindir do transporte escolar do senhor Domingos. Ele achava o máximo a independência de ter umas moedas no bolso para comprar o bilhete da camioneta das 6 horas, ir até à estação de comboios procurar aventuras, rastejar todo sujo em busca da bola perdida, gastar parte dos 5 escudos em gasosa e bolas de berlim. Já sem dinheiro suficiente para a comioneta, voltava a pé para casa, mordiscando umas batatas fritas pála-pála acompanhado de outros amiguinhos mais velhos que também tinham o hábito de caminhar até à Venda Nova. De pasta às costas, ele percorria uns 5 quilómetros até à Portelinha, sem dar por nada, na rebeldia própria da idade, onde ali e acolá tocava nas campainhas e fugia à toa, fintava paralelos da estrada com uma lata de feijão, surrupiava uma ou outra laranja de um pomar. Enfim, livre e feliz saciava a fantasia e o sonho infantil, num tempo em que era bem mais fácil ser criança sem ter que sentir o peso actual desta sociedade.
O colégio que frequentava era privado e murado, com um jardim de cedros enormes e disciplina rigorosa. Depois de entrar, a maioria dos alunos do Externato Camões não tinha passe livre para sair, e poucos ousavam cruzar a portinhola daqueles enormes portões verdes sem a permissão do director. Naquele ano muitos colegas haviam trocado de escola e outros novos chegados à sua turma. Ele era considerado um bom aluno mas não gostava de perder muito tempo com os estudos. Os seus olhos e a janela levavam-lhe os pensamentos para fora da sala de aula. Distraídos, eram atraídos pelo reboliço e pela dança das folhas da tília frondosa que sombreava o recreio, o que deixava os professores em fúria e os colegas com troça. Uma das professoras, achando que poderia salvar a sua alma, recambiou-o para o interior da sala, trocou-o de carteira e de colega, não imaginando que com isso seria pior a emenda que o soneto. Em vez de o fazer regressar à terra, levou-o para perto de um anjo e directo ao paraíso.
A princípio estranhou, tinha naquela fila um grupo de colegas mais calmos e menos incomodativos, o que fez com que melhorasse o rendimento escolar. Ficou mais atento e concentrado, fez bons progressos e até melhorou a nota a matemática. Quando já estava mais ou menos encarreirado, reparou na Marília: nariz afiado, covinhas simétricas em cada sorriso, cabelo preto, e uns olhos cor do mar, chamativos. Nela reencontrou de novo a sua janela, bloqueou tudo e todos ao seu redor e via-se reflectido naqueles olhos, eu… ele, um tímido magricela de voz muda e embargada, cabelo comprido e encaracolado, calças com joelheiras e cara de parvo. Sem que ela desse por nada, ficava pr'ali embevecido e ruborizado a cada olhar seu, directo ou cruzado. O fim-de-semana trazia uma estranha vontade da primeira aula da semana, só para a rever, para lhe pedir explicações de francês e terminar os deveres de ciências. Procurava a sua companhia no recreio, ignorando o saltitar da bola e os olhares intrigantes das funcionárias. Encantado e desajeitado, ficou paralisado quando ela, no último dia de aulas, se despediu com um beijo tão inesperado como efémero. Nunca havia sido beijado antes, nunca por quem tivesse uma paixão tão platónica, inocente e secreta. Guardou para ele aquele momento como o mais precioso dos tesouros, como um presente da primeira namorada.
p.s: Certo Tó, eu usei uma foto tua tirada no jardim do colégio. Sabes que não tenho nenhuma foto dessa época, e aquela imagem estampada na camisola enquadra-se às mil maravilhas neste texto. E até ficaste bem, com aquela tua carinha de safado! Abraço mano.
O colégio que frequentava era privado e murado, com um jardim de cedros enormes e disciplina rigorosa. Depois de entrar, a maioria dos alunos do Externato Camões não tinha passe livre para sair, e poucos ousavam cruzar a portinhola daqueles enormes portões verdes sem a permissão do director. Naquele ano muitos colegas haviam trocado de escola e outros novos chegados à sua turma. Ele era considerado um bom aluno mas não gostava de perder muito tempo com os estudos. Os seus olhos e a janela levavam-lhe os pensamentos para fora da sala de aula. Distraídos, eram atraídos pelo reboliço e pela dança das folhas da tília frondosa que sombreava o recreio, o que deixava os professores em fúria e os colegas com troça. Uma das professoras, achando que poderia salvar a sua alma, recambiou-o para o interior da sala, trocou-o de carteira e de colega, não imaginando que com isso seria pior a emenda que o soneto. Em vez de o fazer regressar à terra, levou-o para perto de um anjo e directo ao paraíso.
A princípio estranhou, tinha naquela fila um grupo de colegas mais calmos e menos incomodativos, o que fez com que melhorasse o rendimento escolar. Ficou mais atento e concentrado, fez bons progressos e até melhorou a nota a matemática. Quando já estava mais ou menos encarreirado, reparou na Marília: nariz afiado, covinhas simétricas em cada sorriso, cabelo preto, e uns olhos cor do mar, chamativos. Nela reencontrou de novo a sua janela, bloqueou tudo e todos ao seu redor e via-se reflectido naqueles olhos, eu… ele, um tímido magricela de voz muda e embargada, cabelo comprido e encaracolado, calças com joelheiras e cara de parvo. Sem que ela desse por nada, ficava pr'ali embevecido e ruborizado a cada olhar seu, directo ou cruzado. O fim-de-semana trazia uma estranha vontade da primeira aula da semana, só para a rever, para lhe pedir explicações de francês e terminar os deveres de ciências. Procurava a sua companhia no recreio, ignorando o saltitar da bola e os olhares intrigantes das funcionárias. Encantado e desajeitado, ficou paralisado quando ela, no último dia de aulas, se despediu com um beijo tão inesperado como efémero. Nunca havia sido beijado antes, nunca por quem tivesse uma paixão tão platónica, inocente e secreta. Guardou para ele aquele momento como o mais precioso dos tesouros, como um presente da primeira namorada.
p.s: Certo Tó, eu usei uma foto tua tirada no jardim do colégio. Sabes que não tenho nenhuma foto dessa época, e aquela imagem estampada na camisola enquadra-se às mil maravilhas neste texto. E até ficaste bem, com aquela tua carinha de safado! Abraço mano.
26 comentários:
Que texto maravilhoso. Agora fiquei nostalgica a recordar tempos em que não tinha tantas responsabilidades, em que tudo era bem mais simples (ou não) e os nossos sentimentos mais genuínos. Beijinhos.
No 3º ano do ciclo?!!!
No meu tempo era 1ª à 4ª classes; depois o ciclo preparatório de 2 anos e a seguir o liceu.
Quanto ao 1º beijo, acho que, apesar de efémero, é sempre o que nos fica e nunca esquecemos.
Bom fim-de-semana.
Mónica, um beijinho grande para vocês.
Gi, se não estiver equivocado, frequentei o 3ª ano do ciclo preparatório antes de haver uma reformulação do ensino escolar e passar depois a ser chamado de 7º ano unificado.
Como tudo na vida a 1ª vez fica com um lugar reservado na memória.
Bom fim-de-semana
Com que então MARLIA...nunca me contás-te!!!!
Adorei esta viagem ao nosso passado naquele mafadado Colégio em que as regras por mais severas que fossem, melhor para as contrariar....lembras-te daquela nota de 500 escudos que encontrás-te numa carteira velha na estação de Rio Tinto, enquanto esperavamos pela camioneta??? Fomos Ricos durante uns tempos....
Cada vez me surpreendes mais, qualquer dia vais ter mesmo que escrever um livro!!
Belíssima viagem ao passado! Uma coisa intrigante é que, por muito que tente, não me lembro nunca do primeiro beijo. Claro que houve um que me marcou, mas tenho a certeza que não foi o primeiro.
Tó, ainda eras muito chavalo para perceberes certas coisas (risos). Tenho algumas histórias, que não sei bem porquê, guardei só para mim!
É claro que recordo essa carteira bem recheada, até parece que a estou a ver, e recordo também que uns anitos mais tarde aguentei estoicamente a insistente implicância do Mascarenhas para que eu pagasse o vidro que tu partiste. Ainda me deves essa.
Estava à espera que reparasses no pormenor da fotografia, que não me pertence, no entanto tem muito a ver com esta história. Se entretanto não descobrires de quem é eu revelo-a, pode ser?
Abraço e beijos à malta
Carlos, o primeiro é sempre o primeiro, mesmo que de outros nunca se esqueça.
Abraço
E queres tu que eu comente? Jove, nenhum comentário poderá fazer justiça a este texto. Fez-me recordar o rubor do primeiro beijo, aquela aceleração do batimento do coração, o despertar do sonho. E quando assim é, não há mais nada a acrescentar...
Abraço, bom FDS!
Texto tão lindo!
E o melhor de tudo é que, para contextualizar espacialmente, o Externato Camões fica na MINHA terra, Rio Tinto :)
Bj,
(i)
Que recordação tão doce e que bela a forma como a descreves. Sorri encantada.
Bjs um óptimo fds para ti e todos teus. Boas pedaladas ;)
Dizer mais o quê?
Não sei se o texto está perfeito.
Para mim está!
Akele abraço, pah!
lá, ó faxabôre... :P
com que então foi assim :)
Adorei este teu texto e concordo com o teu irmão...um dia destes temos de falar a sério no assunto :D
Beijinho e excelente fim-de-semana para vocês!
Sabes uma coisa? Quando olhei para a figura pareceu-me familiar, mas comecei a ler o texto e passou para segundo plano....agora que tu falas na dita....!!!!???? já sei, esta imagem está numa camisola minha que usava quando tirei uma foto no Colégio, certo???
Quanto ao Mascarenhas, acho que ainda vai ter que esperar, e quem sabe dar umas voltivas na cova até que eu lhe pague o vidro, pena que tu tivesses que o aturar ( a culpa é tua,se não tivesses reprovado um ano não ficavas lá a aturá-lo)
Abraço e BFS.
Tó, a tua resposta está em adenda ao poste. Tens razão, foi por isso que aturei o Máscara mas também não foi assim tão complicado, sempre ficou uma boa história para contar.
Até amanhã. Abraço mano.
Rafeiro... há sim, acrescento que tu e todos os que cá vêm são sempre bem vindos.
Abraço.
Inês Brito, obrigado. A tua terra diz-me muito, sabias?
Beijinho
Sunshine, as pedaladas foram boas e amnhã há mais para aproveitar este sol maravilhoso.
Beijos
Kok, grato pelo comentário.
Akele abraço, pah!
Ka,
Ahhh pois foi! :)
Beijinho
Ó faxabôre
Sirva-se á vontade ... pena ser virtual
Obrigado :)
Paulo,
parabéns!
que texto encantador!
privilégio meu lê-lo. o que escreve é fantástico.
bom fim de semana
um sorriso :) e um...até já'
mariam
As coisas que tu escreves... e tão bem.
Lembro-me bem do meu primeiro beijo, foi de gritos :)
Beijossssssssssssssss
...é delicioso recordar!!
beijos
Palavras para quê?! Excelente o teu texto. Há momentos que nunca se esquecem. Ficam guardados na nossa memória. Só para nós. Ou um dia apetece-nos contar aos outros... e ainda bem! :D
Jinhos :)
:))
ca puto mai giro :))
tánkiu por me fazeres recordar o q nunca vou eskecer: o first kiss :))
xinhinhus pa tu da lua
nb - posso te linkar??
Enviar um comentário