Num gesto delicado solicitou-lhe que a deixa-se ocupar o único lugar vago, junto à janela. Toda ela era charme, tão intenso que não o iria deixar indiferente. Tinha uma presença tão enigmática, mesmo ali à sua frente, que seria impossível ignorá-la. Quando deu por si, estava encantado com ela e nada disposto a ter que sair na próxima paragem, na sua paragem. Homem de elegante presença, parecia alegre, disponível e inteligente. Talvez na sua vida quotidiana há muito que não acontecia nada tão excitante como aquele instante, ou poucas pessoas saberão que ele ainda existe. A solidão não mata mas já lhe deixa marcas no fígado, na dependência e no odor da respiração. Provavelmente sentia que já tinha o destino marcado com as amarguras de uma vida intensa. Ainda assim, a olhava sem querer e foram mais que muitas as vezes. Libertou-se, fantasiou carícias, beijos e confissões, abandonando-se em imagens desconhecidas, suaves e doces daquela mulher que o afligia. A senhora era um ser magnético, impávida e perturbadora, que despertava os instintos primários daquele homem, de alguns homens, mais do que um simples desejo um rosto oferecendo caprichos, para não imaginar outras coisas. Engraçado! Eu já os imaginava um cenário diferente, em tons encarnados, não sei bem porquê, embalados por vibrações como aquelas do veículo colectivo no meio do trânsito. O tempo passou e, não tardaria muito, chegaria o meu momento de deixar que aqueles dois prosseguissem a viagem. Desta vez o olhar dela tornara-se observador e, no seu interesse em redor, havia algo que estaria a congeminar. Ele sentiu um calafrio assim que ela cruzou o seu olhar e lhe pareceu ver um sorriso. Retribuiu a viragem de olhos e fez de conta que não era nada com ele. Ela sussurrou-lhe qualquer coisa que o nervosismo o impediu de escutar. Retorquiu com um desculpe, pode repetir? De tão distraído que eu estava, quase falhei a minha paragem. Num salto levantei-me e aproximei-me da porta de saída, sem antes voltar a cabeça para trás e reparar que ela tomou o lugar que eu deixei vago. Ele pegou na sua mão, e num gesto muito meigo, mesmo ternurento, pareceu-me nascer uma cumplicidade entre os dois interlocutores. Poucos segundos depois fiquei sem os ver, fiquei tão baralhado que despoletei um reboliço de questões, daquilo que ainda recordava, do que me parecia ter sido. Ou não teria sido? Ou fui eu que imaginei ter sido? Mas depressa voltei à realidade, segui a pé e deixei que a minha música do MP3 me hipnotizasse.
Sigur Ros - Hoppipolla
Sigur Ros - Hoppipolla
11 comentários:
Assistir a cenas dessas é um previlégio a que poucos se podem dar ao luxo. A indiferença, o egoísmo e a falta de confiança nos outros, faz com que esta situação se aproxime muito mais da fantasia do que da realidade comum...
ou talvez seja ainda uma réstia de esperança
Acredito que aconteçam muitas histórias dessas ao nosso redor de quando em vez, só que acho que vamos demasiado distraídos com seja o que for para reparar em tamanha magia! Parabéns mais uma vez!
:) Beijinho
Ah isso é que está mal, teres saído na tua paragem e perder um futuro tão próximo de ti.
Amanhã vê lá se os vês, que eu quero saber do resto.
Linda descrição, Paulo.
Uhmmm ... passaram muito depressa dos olhares aos actos.
Instantâneos...magnífico como os conseguiste captar!
bjs
No meio de tantas cenas tristes que vou assistindo, há uma ou outra dão uma boa história. Beijinho Si.
Foi uma espécie de presente e logo a mim que ando sempre distraído. Beijinho Lili.
O facto de eu ter saído na minha paragem pode ter "ajudado" em qualquer coisa, não achas Patti?
Beijinho
Não sei Gi, na paragem seguinte há um Centro de Dia!
Beijinho
Não dava para não reparar. Beijinho LeniB.
Ainda bem que há momentos assim, momentos em que a solidão é quebrada com sorrisos e comunicação.
Ainda bem que o presenciaste para poderes contar.
Bjs
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