Aqui e ali sopravam vagos ruídos, que misturados com recordações passadas e fragmentos de sonhos povoavam o seu alterado sono. Anjos, sombras e um zumbido das trevas faziam as vezes de um bando de pássaros, miados de gatos, e sussurros de alguém muito chegado a ele, a falecida, que um dia se despediu para dormir e, sem perceber bem porquê, nunca mais voltou. Lentamente o ruído cessou e seus ouvidos foram inundados por um silêncio pleno que se espalhou pela mente. Então as lembranças clarearam nítidas, e ele percebeu que aquele era o dia do aniversário. Reviu no pensamento as páginas de um livro de histórias chamado vida. Parou em cada uma delas para lhes analisar a memória, as quatro paredes de uma casa conjugal, um quintal onde as galinhas picavam o chão e uma mulher de pequenas mãos gretadas lhes atirava grãos de milho. A companheira de sempre, aquela figurinha debilitada que à beira dele resistia ao tempo. Sorridente, costumava ficar minutos infindáveis a contemplar aquele gesto que lhe parecia um chamamento, a nitidez das mãos e dos grãos de milho ao sol, o contraste das superfícies, a sugestão do movimento, dava-lhe asas à imaginação, indicava-lhe o azul num céu claro.
Do grande livro da sua memória voou o pensamento para um quarto de camas de ferro e cadeiras almofadadas claras junto a uma janela luminosa, flores cor de sangue e uma porta que se abre para deixar entrar uma figura feminina de longos cabelos dourados. A visão o fez sorrir, enquanto a claridade entrava pela janela e desenhava uma silhueta familiar que lhe fez inundar os olhos. Uma paz indescritível apoderou-se do seu corpo. Sem uma palavra ela chegou perto dele e lhe deixou um beijo impresso na testa. Estava leve, inteiramente tomado pela felicidade de ser quem era, velho e vivido, vendo-se subitamente de mãos dadas com a neta, tão feliz. Naquele dia tinha casado com a única mulher da sua vida, esposa devotada, franzina mas ágil, que agora em sonhos lhe aparecia bela como então. Mulher dedicada, espécie de pau para toda a obra da patroa, que num abrir e fechar de olhos a vida a atirou para o abismo do esquecimento. Nem mesmo a fortuna do filho sempre presente lhe serenara um sofrimento que suspirava em silêncio, de olhos fechados, enquanto imagens dela se esbatiam em lembranças, cobertas por uma névoa esbranquiçada. Tu, meu anjo, não te esqueces de mim, pensou num sorriso que se fixou na sua boca murcha, enquanto do olhar se soltaram algumas lágrimas rebeldes. Uma luz se insinuou por uma fresta da porta e atravessou o quarto, incidindo directamente sobre a sua cama coberta por uma manta branca. Com ela veio a voz habitual de quem cuida a toda a hora, o nó vigilante que prende as pontas soltas do seu corpo frágil à vida, naquele aposento, todo o tempo dominado pelo cheiro dos medicamentos e um odor ácido das fraldas geriátricas mudadas a horas certas pela enfermeira.
Para que não se esqueça. Um dia, poderemos ser nós numa cama de hospital.
The Fray - How To Save A Life
5 comentários:
Para que não se esqueça...
Belo texto!
Bjs e boa semana!
Olá!
É desumano o que certos familiares fazem aos seus idosos...é vê-los em macas nos corredores do hospital com alta médica...mas ficam como casos socais...
Beijocas
São recorrentes dois temas no meu blog: a mulher e os velhos, como os gosto de chamar.
Por isso já disseste tudo e muito acertado, como sempre.
È lamentável ver a quantidade de filhos que abandonam os pais em lares e em camas de hospitais. Gosto de pensar que 'cá se fazem cá se pagam' e a factura há-de sair-lhes bem cara.
Um abraço
Fizeste-me chorar.
Enviar um comentário