sexta-feira, julho 4

as crianças das mil vezes

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Com uma equipa especializada de 15 pessoas, o CRIAR - Centro de Educação e Terapia de Crianças e Adolescentes, Lda, desenvolve um trabalho imprescindível em várias áreas relacionadas com o apoio pedagógico ou clínico na infância. Ana Isabel Aguiar, terapeuta e sócia-gerente do CRIAR, em entrevista ao jornal “O Primeiro de Janeiro”, Agosto de 2006, abordou, sobretudo, o caso das crianças com perturbações do espectro autista, problemática na qual o CRIAR se tornou especialista, “surgem-nos muitas situações diferentes. Aquelas que designamos por dificuldades específicas de aprendizagem, onde está inserida a dislexia, em que a criança, apresenta dificuldades de aprendizagem da leitura e escrita de tal forma graves, que poderão impedir o processo de aprendizagem académica, com todas as consequências sócio-emocionais que daí advêm. Outro tipo de dificuldades de aprendizagem que nos surgem com muita frequência não têm subjacentes aspectos inerentes à criança, mas são consequência de aspectos de desmotivação, ansiedade, ou questões relacionadas com o meio envolvente. Com muito menos frequência surgem situações ainda mais específicas, como a discalculia; não estamos a falar das dificuldades inerentes à matemática que todos ouvimos falar, mas em problemas que surgem em estádios muito precoces quando as crianças não conseguem adquirir as competências que se esperam nos primeiros anos de escolaridade. Por último, recebemos crianças com problemas de ordem emocional, como dificuldades de relacionamento, ou dificuldade de comportamento, tanto no contexto familiar como escolar”.


O CRIAR, no entanto, recebe muito mais crianças com alterações de desenvolvimento do foro das perturbações do espectro autista, do que propriamente com dificuldades de aprendizagem, dado não existir resposta para estes problemas num grande número de instituições, tanto públicas como privadas. Ana Isabel Aguiar esclarece: “Recebemos em grande número crianças com autismo e, cada vez mais, com Síndrome de Asperger (SA), o qual faz parte do leque das perturbações do espectro autista. São casos mais ligeiros, podendo passar despercebidas nos primeiros anos de vida. Hoje, sabe-se que o SA é muito mais frequente que os casos de autismo clássico, tendo consequências gravíssimas se não forem diagnosticadas a tempo.


O Autismo é uma alteração do desenvolvimento que incide particularmente em três aspectos: na comunicação, não só ao nível da linguagem, mas também na aquisição de gestos que tenham o intuito de comunicar; no relacionamento interpessoal, estas crianças isolam-se e parecem possuir mais interesse no meio físico do que no meio social e humano - podem passar horas com um objecto que as atrai e que manipulam de forma repetitiva e estereotipada. “Uma criança não pega num carrinho para brincar normalmente, vira-o ao contrário e passa horas a mexer nas rodas, por exemplo. Isto está relacionado com a terceira dificuldade, problemas imaginativos. Estas crianças não brincam ao “faz de conta”, é algo muito impressionante pois estamos habituados a ver as crianças sempre a brincar, no fundo é o seu “trabalho”. Não interagem com outras crianças, e raramente com adultos, excepto para satisfazer as suas necessidades”, informa Ana Isabel Aguiar.


O SA caracteriza-se como o extremo mais ligeiro das perturbações do espectro autista. Embora não tenham a mesma dificuldade em adquirir a linguagem, a comunicação está muito comprometida. São crianças que por vezes aprendem a falar muito bem, utilizando até termos “caros” para a idade, e uma articulação perfeita. Porém, o domínio não verbal da comunicação está comprometido, ao nível dos gestos, da postura, da entoação da voz e do contacto ocular. A comunicação é feita unidireccionalmente, em vez de falar connosco, falam para nós. Normalmente, o desenvolvimento intelectual não está comprometido, pelo contrário, às vezes são crianças com inteligência acima da média, mas só revelam as suas capacidades nas situações que vão ao encontro dos seus centros de interesse. Segundo Ana Isabel Aguiar, “estas crianças têm grandes dificuldades ao nível do relacionamento com colegas e mesmo com adultos, primeiro porque têm os seus interesses estabelecidos, ignorando tudo o que não vá nesse sentido e, segundo, porque são muito mal interpretadas pelos adultos, uma vez que não apresentam nenhum sinal externo, por exemplo fisionómico, indicativo de alteração de desenvolvimento. Falam e são inteligentes, o que faz com que hajam interpretações erradas, como por exemplo, “se são inteligentes para uma coisa também têm de ser para outras”. Mas, a verdade, é que estas crianças são hiper-selectivas podendo desenvolver conhecimentos e competências extraordinárias numa determinada área e simultaneamente apresentar muitas dificuldades na resolução de pequenos problemas do dia-a-dia. Geralmente têm medo de arriscar, pois a sua inteligência permite-lhes antecipar as dificuldades e detestam qualquer alteração imprevisível às rotinas do quotidiano. A falta de habilidade nas situações de interacção social, leva-as a reagir ou comportar-se de forma desadequada, sendo frequentemente apelidadas de mal-educadas. Os próprios pais sofrem bastante com esta situação, pois para além de não compreenderem e não saberem como lidar com os seus filhos, são muitas vezes acusados de não os saberem educar”. Nos primeiros anos de vida “estas crianças não têm as reacções de uma criança dita normal, por exemplo, não correm para nós quando chegamos a casa. Naturalmente que a ausência deste tipo de reacções desencadeia uma enorme frustração nos pais. A parte afectiva parece estar adormecida, o que não é verdade, pois se houver interacção, elas respondem positivamente a esses estímulos afectivos. São pormenores que parecem insignificantes mas fazem toda a diferença”. Alguns sinais que podem revelar a presença do SA são: ausência da vontade de comunicar, ausência de gestos com significado comunicativo, ausência de contacto ocular com intuito de comunicar, ausência de jogo simbólico, problemas de sono e alimentação e birras sem razão aparente. Isto deve-se ao facto de serem crianças de rotinas, e quando alguma situação inesperada acontece ficam perturbadas. “É necessário ajudá-los a antecipar as mudanças, sobretudo recorrendo a ajudas visuais. Estes indivíduos conseguem adquirir competências, mas têm uma forma diferente de aprender, tendo de ser respeitados. Costumamos dizer que são «os meninos das mil vezes», pois é necessária muita perseverança para que realizem as aprendizagens esperadas para a sua idade. Normalmente sentem-se atraídos por matérias muito objectivas, como biologia, matemática, informática, geografia. A psicologia, a filosofia, e tudo o que tenha a ver com conceitos mais abstractos, assim como as relações humanas, tantas vezes imprevisíveis e incompreensíveis, não constituem os seus centros de interesse.
O sucesso da intervenção psicológica depende de vários factores, sendo importante um diagnóstico precoce assim como a intensidade da intervenção e as características da própria criança”. Na fase adulta estes indivíduos tão especiais e enigmáticos encontram, por vezes, o seu espaço, e, os outros, já se adaptaram a eles respeitando as suas idiossincracias. Muitos deles conseguem adquirir competências que lhes permitem trabalhar. Há exemplos de indivíduos com esta perturbação que se tornaram professores universitários muito competentes. Segundo a nossa entrevistada, “são aqueles professores, que alguns de nós já tivemos, que passam a aula toda a olhar para o tecto a debitar matéria e, quando nos aproximamos para tirar alguma dúvida, eles são muito amáveis, mas explicam exactamente da mesma maneira, pois não conseguem colocar-se no nosso ponto de vista. Muitas vezes é a imagem do génio excêntrico e distraído, que só vive para o trabalho. Muitos não conseguiram ser diagnosticados correctamente sendo erradamente diagnosticados como esquizofrénicos ou com outro tipo de distúrbios emocionais. Poucos tiveram a sorte de ter pais e professores que respeitaram a sua forma muita especial de pensar e aprender, enveredando por aquilo que mais gostaram, conseguindo hoje realizar-se a nível profissional, muitos deles verdadeiros génios. A nossa esperança no CRIAR é que os nossos “meninos” mais novos que estão a ser ajudados consigam, não só a nível profissional, mas também em termos de relacionamento interpessoal e social, atingir uma integração o mais plena possível. Eles podem aprender facilmente as matérias escolares no caso de utilizarmos métodos e estratégias adequados às suas especificidades. Mas ao nível interpessoal têm muita dificuldade em adquirir competências que lhes permitam um relacionamento ajustado. Por exemplo, se alguém faz uma asneira numa sala de aula elas denunciam logo o infractor, pois são crianças que não conseguem mentir neste tipo de situações em que os códigos do relacionamento interpessoal são muito subtis. O convívio com estas crianças é muito gratificante, tanto para os técnicos, como para os professores e colegas quando passam a entende-los”. Hoje sabe-se que estes problemas têm uma causa orgânica. Durante muitos anos pensou-se que era um problema de ordem emocional, derivado de uma relação mãe/filho distante, o que causou uma culpabilidade muito grande nos pais. Há registo de situações em que as crianças foram retiradas da família, o que se revelou um fracasso total, visto os pais não terem qualquer responsabilidade nesta matéria. O autismo é diagnosticado cada vez mais cedo, segundo a nossa interlocutora, “graças a uma crescente sensibilidade por parte dos médicos e professores, já temos crianças que começam a intervenção por volta dos 12 meses.


As outras problemáticas que aparecem no CRIAR, como as dificuldades de aprendizagem surgem naturalmente mais tarde. Se tudo correr bem, por volta dos quatro/cinco anos, mas muitas vezes só quando iniciam a escolaridade. Os problemas do foro emocional surgem, nas crianças, em qualquer idade, variando muito em função do tipo de problemática. Nas palavras da nossa entrevistada, “se forem problemas de hiperactividade ou de comportamento, as coisas são mais claras, e os pais recorrem mais cedo. Se os problemas são mais interiorizados, como no caso das crianças apáticas, inibidas, ou que se isolam, muitas vezes não lhes é dada a devida atenção, pois são muito sossegadas e por isso não incomodam. Mas esses são os mais graves. Portar-se mal é normal numa criança, principalmente se o meio ambiente não proporciona condições para um desenvolvimento saudável, mas uma criança que anda sempre sozinha, apática, que não brinca e não ri, pelo menos da forma a que estamos habituados, é aquela que necessita de maior apoio e atenção.


O CRIAR iniciou um projecto-piloto com uma vertente educativa nas áreas de teatro, música, pintura e dança. Ana Isabel Aguiar esclarece: “Inserir as nossas crianças em escolas de música e teatro já existentes é muito difícil dada a rigidez das regras que muitas vezes existem. No entanto, elas necessitam absolutamente destas vertentes, tal como qualquer outra criança. Resolvemos assim, criar diversas oficinas, onde procuraremos integrar crianças ditas normais com as nossas ditas especiais. Espero que haja abertura suficiente dos pais para esta iniciativa, pois não são só as crianças com SA ou autismo que beneficiam do convívio com as crianças ditas normais. Os meninos com SA e com autismo de elevado funcionamento são crianças excepcionais no que diz respeito à verdade, à transparência, à integridade e até à solidariedade quando conseguem ultrapassar a barreira da comunicação e da estranheza das regras que regulam as interacções. As crianças ditas normais poderão beneficiar muito com o convívio com estas crianças que apesar de não conseguirem imaginar, sonhar e brincar facilmente, conseguem dar e receber muito amor”.

8 comentários:

Olá!! disse...

Pois é P, a interacção é deveras importante e ainda bem que cada vez acontece com mais frequência, para bem de todas as crianças...
Parabéns à CRIAR
Beijos e bom fim-de-semana para ti e para a C

Ka disse...

Deste extenso artigo, e porque já falamos os dois sobre este assnto, chama-me a atenção este ultimo parágrafo acerca da participação de crianças ditas normais. Penso que não só é importante para as outras mas também para as próprias crianças.
Na sociedade de hoje em dia muitas vezes a discriminação é resultado da total falta de conhecimento, de contacto, etc

Embroa um bocadinho comprido está excelente este post!

Beijinhos para ti C. & R.

LeniB disse...

Gostei mesmo de ler este teu post: recordou-me o filme "Uma Mente brilhante" baseado na vida de John Forbes Nash.
bjssss

Patti disse...

A parte da interacção de crianças ditas normais com as outras ainda vejo muito difícil. Infelizmente.
E sem me adiantar muito sei do que falo, quando me refiro a deficiências neurológicas mais profundas.
De qualquer forma, um Viva muito grande a todas estas instituições que atendem às necessidades dos desprotegidos.

paulofski disse...

Desculpem o texto, é mesmo comprido e um gajo até fica com os olhos em bico, mas este artigo não merecia ser resumido.

O CRIAR merece os teus parabéns Olá.
O R. também agradece.
Bom fim-de-semana e Beijosssssss.

"estava a pensar que realmente as crianças, principalmente quando são especias transformam-nos em melhores pessoas e isso nota-se..."
Obrigado Ka. Beijinho e Bom fim-de-semana.

E ainda há muitos mais filmes
sobre este tema. Beijinho e bom fim -de-semana Lenib.

paulofski disse...

Por isso mesmo Patti, é de louvar o trabalho que este centro vem prestando às crianças, e suas famílias no sentido de lhes proporcionar a "igualdade", o sonho e a realização, como é este
o caso, a encenação de uma peça de teatro com um grupo de jovens adolescentes (AUTIatro), de 14/15 anos, onde entre eles está o meu filho.
Beijinho e bom fim-de-semana.

mariam [Maria Martins] disse...

parabéns a "O CRIAR"...
parabéns a SI p`lo post e divulgação...
e ainda parabéns ao seu FILHO...

quanto à interacção... ela é possível e saudável, desde que devidamente acompanhada por profissionais especializados, meu filhote de 13 anos, nas suas turmas desde o infantário, sempre houve pelo menos um menino(a) "diferente", normalmente com trissomia 21, e não foi por isso que as turmas funcionaram pior, pelo contrário, tanto em termos de aproveitamento ou comportamento, chegando a ser emocionante o cuidado, carinho e amizade entre as crianças...sempre fiz questão de convidar TODOS para os aniversários do meu filho, embora carecendo de atenção redobrada, sempre correu tudo bem...

bom fim-de-semana
um sorriso :)

paulofski disse...

Mia culpa! O R. ralhou comigo porque eu troquei o nome do grupo de teatro de que ele faz parte. O R. é um dos jovens do grupo Teatrando.

Todas as crianças retiram ensinamentos e criam amizades na convivência franca das diferenças. Todas as crianças necessitam de aprender, ensinar, imaginar, sonhar e brincar facilmente, amar. Só é preciso o adulto deixar.

Beijinho Mariam, bom fim-de-semana

O Rafa deixa-vos um grande beijinho e um sorriso.