Há momentos e locais da minha juventude que o tempo não foi capaz de cortar da memória. Um desses locais, e que o meu pai teimava em me levar, era o barbeiro. Desses momentos passados naquela pequena garagem transformada em salão de tosquias eu recordo-me muito bem. Não era propriamente o local nem tão pouco o barbeiro, o senhor Sousa, que eu temia. É que eu gostava mesmo muito da minha trunfa russa e encaracolada. Viciava-me e deleitava-me com o simples gesto de mexer na franja e de enrolar os cabelos nos meus dedos. Era o meu fetiche. Quando me cortavam o cabelo eu simplesmente perdia todas as forças, tal e qual Sanção.
Dispersos sobre o balcão, um sem número de tesouras de vários tipos de cortes, navalhas com lâminas afiadas, frascos de colónia barata, pentes, escovas, copos de espumas e aventais de panos velhos causticamente clareados. Nas paredes, uns dez ou mais retratos de penteados da moda, um relógio compassado com o rádio que sussurrava uma música qualquer. Ao canto um sofá, desses de canto, desconfortável, onde se podem esperar eternidades antes que sejamos atendidos sem o receio de nos deixarmos adormecer.
Ai a cadeira, aquele monstro de cabedal vermelho, rotativa, qual cadeira eléctrica onde se senta um condenado. Era como eu me sentia, um condenado. Fitava a minha expressão de pânico, no reflexo daquele profundo espelho à minha frente, enquanto sentia o esganar do avental no pescoço. Entretanto, aparecia o filho do barbeiro, o Joãozinho, com uma vassoura gasta nas mão para varrer aquele monte de cabelos espalhados. E seu sentia um arrepio na nuca e engolia em seco.
-Como vai ser? Aparar ou cortar?
-Cortar, dizia logo o meu pai antes que eu dissesse um “ai”!
E eu lá, vendo as minhas guedelhas serem completamente ceifadas pelas mãos trémulas daquele homem. A tesoura fria e rápida brandia, ameaçadora.
-Cuidado, gritava o barbeiro. Ou paras quieto ou ainda te corto uma orelha, vê lá!
Depois eram as raspadelas de pêlos com a navalha, o pó de talco, aquele secador quente e barulhento, a fétida água de colónia que teria de usar até chegar a hora de tomar banho. Deu uma rematada final no estrago com uma tesourada inútil e disse que estava terminado, não sem antes pegar um espelho para me mostrar como ficou o corte atrás. Até hoje não entendo por que os barbeiros fazem isso! Será que alguém, algum dia, já reclamou e pediu que o trabalho fosse refeito?
Liberto da tortura, saltei da cadeira com a cabeça mais arejada nas orelhas. Sacudi os pêlos, que sobre mim jaziam, enquanto velava os longos cabelos louros espalhados pelo chão. Envergonhado, fugi a sete pés.
A barbearia era um lugar de grande cumplicidade, onde se põe a conversa em dia, de chaha e afiada. Se houvesse novidades o barbeiro saberia. Temática do custo de vida e da bola é que não faltava. De políticas e mulheres só se o patrão puxasse paleio, afinal era ele que tinha uma navalha nas mãos!
Chegado o dia do corte “à máquina zero” tudo se alterou. Para mim tudo passou a ser diferente.
Agora levo eu o meu filho, ele que sempre pede o corte radical da máquina, a lavagem e o gel (atenção, isto que aqui escrevi foi há tempos, ele agora exibe uma trunfa de respeito). Agora o salão é de cabeleireiro com utensílios eléctricos e técnicas modernas. Cómodo e de marcação prévia. Os temas das conversas, invariavelmente, são os mesmos. Noutro local, noutros tempos, o barbeiro, como continuo a chamar o profissional, é agora o João, aquele Joaõzinho que varria os cabelos do chão.
O cabelo no chão continua a ser farto, está é mais clareado pelas tesouradas da vida.
7 comentários:
Grisalho mas brilhante.
Texto brilhante!
Ôi Paulo.
Este teu texto trouxe-me várias recordações.
Até parece que frequentámos o mesmo barbeiro!
Até parece que cortámos o cabelo no mesmo dia, e à mesma hora!
Escreveste-o muito bem, eu acho! Como diz a Patti, BRILHANTE é o termo certo.
Akele abraço, pah!
Mintira! Mintira!
Isto que escreveste hoje não é nenhum rabisco!
É um desenho! E perfeito!
Fizeste-me recordar uma cena passada com o meu filho!
O garoto tem uma trunfa russa e encaracolada e, qd vim para aqui viver, levei-o a uma barbearia, pois não conhecia nenhum joãozinho!
Só me lembro do ar triste do meu filhote qd se viu ao espelho, com o cabelo à homem, muito curto...
Já lá vão quase seis anos e ainda nos lembramos da cena!
:)))
Ao barbeiro nunca fui, mas tenho muito medo da cadeira do dentista!!
:) Beijinho
Lembro-me bem das minhas idas ao barbeiro, no Barreiro. O Sr. Valdemar, que por muito que se pedisse, fazia sempre o mesmo corte, como se nos metesse a cabeça num molde. Curioso, ainda esta semana me tinha lembrado do velhote...
E barba?? ele não fingia que te fazia a barba????
O "meu" barbeiro é mais simpático :)))
Lindas recordações P
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