quinta-feira, maio 14

faneca

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Como nasceu e viveu num bairro de pescadores, o mar não era exactamente uma novidade para ela. Todos os dias bem cedo dava um pequeno passeio pela praia. Brincava entre poças de água que se formavam com a maré baixa, rodopiava na brisa marinha, caminhava lentamente por ali e acolá, por tudo o que lhe fizesse demorar no início da tarefa infantil, das mais importantes e produtivas, a escola como se sabe.

Do mar, Marina só sabia da água dourada, azul e verde, do nome que dava às pedras, algas esponjosas, brilhantes de sal e luz. Nos finais de semana, a praia demorava mais, com direito a ter o avô pescador mais tempo por perto, refazendo redes que os peixes rompiam. Fingia que lhe ligava enquanto ela olhava curiosa para ele. Num desses sábados demorados, ela, já cansada de estar quieta, arriscou mais uma vez e pediu-lhe que a levasse no barco. “Faneca” era o pequeno barco de pesca que lhe tomava a vista, ondulando e chamando por ela. Marina pedia sempre e ele sempre lhe negava. A pequena que nada conhecia, julgava que insistindo um dia conseguiria o seu desejo. E não se enganou.

Naquele dia, ele pegou nela ao colo num jeito de carregar um cabaz de peixe e, num só movimento, carregou-a até ao pequeno barco onde ela exultou de pura alegria. Tudo o que ela queria era entrar no mar a bordo do Faneca junto com o avô. Lentamente entraram os três na suave rebentação que os levaria ao íntimo salino e espesso do mar. Embriagada de felicidade só pedia ao avô que a segurasse forte. O mar puxava muito e agora enfrentavam a desarmonia das ondas que os brindava com súbitas explosões aquáticas. Depois de cada uma delas ficou de cabelos e olhos molhados, encharcados de água e sal.

Para trás ficou o seu mundo que viu dali pela primeira vez, um quadro intenso e acolhedor, banhado por uma grandeza azul e grave que explodia forte e espumante nas pedras, cortando o espaço volátil do ar. O vento de Norte cortava tanto que o céu vibrava sem nuvens. De repente estava ali, cheia de medo mesmo não estando sozinha. Os seus olhos abertos mediam distâncias. O espaço aumentava o seu medo, embalado pelas terras lá longe, tão sozinhas e pequenas quanto ela se sentia. Agarrou e apertou forte a mão do avô, procurando essa sábia suavidade de quem sabe tudo do mundo. Ele entendeu a sua aflição e explicou-lhe que daquele lado, do outro lado que ela não podia ver, também existiam tantas outras coisas, outras pessoas e mundos, países, territórios, tempestades e noites. Tudo igual como aqui, disse ele, só que não os podes ver. Aquilo acalmou-a um pouco e o horizonte arredondou-se ainda mais para ela. O mar ficou mais pequeno e começou uma nova história.

Mais tarde naquele dia, o avô deu-lhe dois presentes que guardou bem guardados. Um, o tamanho do medo, esse espaço aberto e imenso que respeitou. O outro, o conforto de um amor que traça mapas e faz sentido. O medo, esse, foi ficando menor até desaparecer, o amor ficou do mar com o avô.

7 comentários:

FM disse...

Continuas a saber escrever... Muito Bem.
Gostei.
Abraço.

Kok disse...

Quando iniciei a leitura pensei que irias descrever uma receita de caldeirada, ou então dizer como fazer uma cebolada com fanecas.
Apanhaste-me de surpresa debruçado sobre o texto, de tal modo que fiquei encharcado por uma das ondas.
Também me assustei, pah.

Abraços!

Almeida disse...

Linda história de amor.O confôrto do avô fez desaparecer o medo.
um abraço

Gi disse...

Ah, Faneca, que linda história esta da Menina do Mar e do Lobo do Mar que lhe ensinou o respeito.

Ka disse...

lá, ó faxabôre... :P

Muito bonita a tua história!

Parabéns!

Beijinho

PB disse...

Belo texto que aqui deixaste sobre sentimentos e ensinamentos. Parabéns!
Abraço

Patti disse...

Adorei a história e a sensibilidade dos pormenores, Amanhã quando for à praia, vou espreitar a ver se vejo o Faneca.